sábado, 27 de março de 2010

No centenário de Kurosawa, a história dos cinemas japoneses da Liberdade



Em 88 anos de vida, o cineasta japonês Akira Kurosawa dirigiu 32 filmes. Entre eles, obras-primas como "Rashomon" (1950), "Os Sete Samurais" (1954), "Trono Manchado de Sangue" (1957), "Dersu Uzala" (1975) e "Ran" (1985). Foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes e com o Leão de Ouro em Veneza, além de ter ganho um Oscar pelo conjunto de sua obra. É considerado o grande responsável por transformar o cinema do Japão conhecido no resto do mundo. Se estivesse vivo, faria 100 anos nesta terça.

Boa parte de seus trabalhos chegou ao Brasil antes mesmo de Europa e América do Norte. Seus filmes estavam entre as cerca de 2600 produções exibidas em quatro cinemas especializados em cinema japonês localizados na Liberdade, região central de São Paulo, e abertos durante a década de 50. Mais especificamente, no Cine Jóia, na Praça Carlos Gomes. Fechada em 1988, a sala hoje deu lugar a uma igreja evangélica.

Lá, foram exibidas produções como "Trono Manchado de Sangue" (adaptação de Kurosawa para "Macbeth", de Shakespeare) e "A Fortaleza Escondida" (principal inspiração de George Lucas para o roteiro de "Guerra nas Estrelas"), ambas em 1959. Ainda antes disso, quando o cineasta era virtualmente desconhecido fora do Japão, seu primeiro trabalho, "Sugata Sanchiro", chegou ao Brasil, com o título de "A Vida de um Lutador de Sumô".
O longa foi exibido no início da década de 50, numa sessão realizada no cinema mantido por frades franciscanos no salão paroquial da Igreja do Largo São Francisco. Era o Cine São Francisco, que exibiu diversos filmes para a colônia japonesa entre o final dos anos 40 e início dos anos 50. Essas sessões também atraíam alguns poucos não descendentes - um jovem Walter Hugo Khouri, posteriormente um dos mais importantes cineastas brasileiros, era um deles.

A exibição de filmes como "A Vida de um Lutador de Sumô" é uma especificidade de São Paulo, segundo o antropólogo Alexandre Kishimoto, autor de uma dissertação de mestrado sobre os cinemas da Liberdade defendida no início deste mês. "A cidade recebeu produções que mesmo grandes cidades dos Estados Unidos ou da Europa não viam. Filmes que não eram premiados em festivais ou dirigidos por cineastas reconhecidos chegavam à Liberdade", explica.

Reprodução

É uma história que começou na década de 20, quando exibidores itinerantes levavam filmes pelo interior de São Paulo. A prática foi interrompida durante a Segunda Guerra Mundial, quando a colônia japonesa no Brasil passou por diversas restrições (até reuniões em grupos eram proibidas), e só foram retomadas no final da década de 40. Em 1953, veio o primeiro cinema dedicado exclusivamente a filmes japoneses: o Cine Niterói, na Rua Galvão Bueno.

"O nome foi escolhido através de um concurso. Mas o dono do cinema, Yoshizaku Tanaka, usou uma artimanha: sugeriu um nome a um empregado seu, que o inscreveu no concurso e ganhou", explica Alexandre Kishimoto. O nome, aparentemente pouco oriental, seria uma adaptação da expressão "Nitto no Heroi" - em português, "Heroi do Japão". Um ano depois do Niteroi abrir as portas, foi a vez do Cine Tokyo (posteriormente Nikkatsu), na Rua São Joaquim.

Em 1959, foi a vez do Cine Nippon (Rua Santa Luzia) ser inaugurado e do Cine Joia (Praça Carlos Gomes), aberto sete anos antes, dedicar-se exclusivamente a filmes japoneses. Cada um desses quatro cinemas exibia filmes de uma produtora, o que fazia com que cada um tivesse um perfil específico. No Nikkatsu, os filmes jovens da empresa do mesmo nome; no Nippon, dramas ao gosto feminino da Shochiku; no Joia, filmes de diretores premiados da Toho.

No Niteroi, eram exibidos os filmes de samurais da Toei. A sala também era a mais luxuosa da região, e comportava cerca de 1300 espectadores. Foi demolida em 1968, por causa da construção da Radial Leste, e mudou-se para a Avenida Liberdade. "O Cine Niteroi foi um dos principais responsáveis pela transformação da Rua Galvão Bueno na região turística que é hoje", explica Alexandre Kishimoto. "Depois dele, lojas e restaurantes japoneses começaram a ocupar aquela área".

Entre os frequentadores desses cinemas, estavam futuros diretores como Carlos Reinchenbach e João Batista de Andrade. Críticos como Rubem Biáfora e Alfredo Sterheim também eram presença constante. Esses cinéfilos cultuavam cineastas que na época eram desconhecidos fora do Japão, como Mikio Naruse, Heinosuke Gosho, Eizo Sugawa e até Yasujiro Ozu. São exemplares do que veio a ser chamado de "cinema intimista japonês", uma "descoberta" da crítica paulista.

O consagrado Kurosawa, curiosamente, não era um cineasta valorizado nesse círculo. "Ele era criticado por ser supostamente 'ocidentalizado'", explica Kishimoto. Os westerns, afinal de contas, eram uma influência confessada pelo próprio diretor. O diálogo com o cinema americano era uma das muitas transgressões do diretor. "Ele quebrava convenções, e isso incomodava muita gente, inclusive no Japão", afirma Kishimoto.

Entre os cinéfilos de São Paulo, havia outro problema: ao contrário de Naruse e Gosho, Kurosawa era um nome conhecido entre os não-iniciados em cinema japonês. "Apesar de muitos de seus trabalhos terem sido exibidos na Liberdade, ele também conseguiu chegar às salas da Cinelândia paulistana", conta, referindo-se à região da Praça da República. "Seus filmes eram exibidos do Cine Scala, na Rua Aurora, e no Cine Coral, na Rua 7 de Abril, por exemplo".

Hoje, para ver os trabalhos de Kurosawa é preciso apelar para o DVD. Dos seus 32 filmes, pouco mais de duas dezenas estão disponíveis no Brasil. A maioria deles, infelizmente, em cópias de péssima qualidade. Quanto aos cinemas da Liberdade, eles se foram. O Nikkatsu foi o primeiro a fechar, ainda na década de 60. Niteroi e Joia foram os mais resistentes e aguentaram até 1988, sempre exibindo produções japonesas.

Veja abaixo a lista dos 15 principais filmes de Akira Kurosawa, todos disponíveis em DVD no Brasil:

1950. Rashomon (Rashomon)
1951. O Idiota (Hakuchi)
1952. Viver (Ikiru)
1954. Os Sete Samurais (Shichinin no Samurai)
1957. Trono Manchado de Sangue (Kumonosu-jo)
1958. A Fortaleza Escondida (Kakushi-toride no San-akunin)
1961. Yojimbo, o Guarda Costas (Yojimbo)
1962. Sanjuro (Tsubaki Sanjuro)
1963. Céu e Inferno (Tengoku to Jigoku)
1965. O Barba Ruiva (Akahige)
1970. Dodeskaden (Dodesukaden)
1975. Dersu Uzala (Dersu Uzala)
1980. A Sombra do Samurai (Kagemusha)
1985. Ran (Ran)
1989. Sonhos (Dreams)


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