Greve da Cobrasma, Osasco, 1968, assim a ditadura tratava a classe trabalhadora
A
ofensiva da burguesia contra a classe trabalhadora brasileira foi o mote do século
XX e prossegue no século atual. Por inúmeras vezes a elite dirigente do país recorreu
a soluções de força para fazer valer seus interesses de classe, foi assim em 1935, 1937, 1945, 1954, 1961, 1964, 1968... Desde a democratização, em 1985, o controle dos rumos do país, exercido pela
burguesia (industrial, rural, financeira) tem se dado de forma discreta e
dissimulada. Por trinta anos o controle ideológico das massas manteve o Brasil “sob
controle”, apesar de todas as contradições verificadas em nossa sociedade. Esse
controle começou apresentar limites após a vitória de Lula em 2002.
A inclusão,
pelo consumo, de milhões de brasileiros, foi acompanhada por uma revolução nos
meios de comunicação promovida pela internet. A burguesia perdeu o monopólio da
informação, seus esquemas de manipulação, via mídia corporativa, começaram a
ser denunciados por todo um batalhão de ativistas digitais. A contestação virtual se desenvolveu acompanhada por uma serie de mobilizações concretas, em escala crescente. Todo o poderio de
informação da mídia de massas não foi suficiente para eleger seus candidatos nas eleições de 2006,
2010 e 2012. O modelo político-econômico distributivo inaugurado por Lula em
2002, fez com que os incluídos pelo consumo passassem cada vez mais a exigir
cidadania. Nesse ponto as coisas começaram a ficar preocupantes para as elites
dirigentes do país.
Se
retornarmos cinquenta anos no tempo (1963-64), notaremos muitas semelhanças com
a conjuntura atual. Uma classe trabalhadora muito organizada e atuante (muito
mais que a de hoje, diga-se de passagem), movimentos políticos eclodindo no
campo (atualmente, fenômeno semelhante de observa nos meios urbanos). Um
movimento estudantil em ascensão (muito mais coeso que o atual), capaz de obter
vitórias e interferir no jogo político. Em contrapartida, via-se uma classe média
assustada com o protagonismo dos mais pobres, um sistema de mídia trabalhando full time para desestabilizar a República.
Um cenário de desestabilização em âmbito internacional, em boa parte promovido
pela interferência direta dos EUA, sócio majoritário e guia das elites
neocoloniais latino-americanas (ontem e hoje), pronto a apoiar qualquer medida antidemocrática.
O
filme passado, todos sabemos como terminou, com um país aterrorizado por um
Estado repressor e autoritário, governado por uma elite excludente e sádica. Um
novo bloco de poder que não mediu esforços para aniquilar todos os seus
opositores. Um regime que instituiu um modelo de segurança pública baseado na
mais brutal repressão, um modelo que sobreviveu a ditadura e se perpetuou no
sistema jurídico-policial brasileiro. Acompanhado de uma lei de imprensa
completamente voltada aos monopólios aliados do regime autoritário, que também
sobreviveram a ditadura e permaneceram como fiscais da burguesia.
Muito se
fala (com justiça) sobre a ofensiva do regime civil-militar contra os
movimentos sociais, brutal e eficiente, mas gostaria de lembrar também outro
tipo de violência promovida pela ditadura, a violência econômico-institucional.
Todas as conquistas obtidas pelos
trabalhadores, a partir de 1930 (ou mesmo antes), foram atacadas pelos novos donatários
do poder. Uma série de medidas de austeridade econômica foram postas em prática,
penalizando sobretudo os mais pobres.
Entre 1964 e 1968, o salário mínimo caiu em mais de 50%, no primeiro ano
após golpe, mais de quinhentas empresas faliram em São Paulo, o desemprego e a miséria
aumentaram, com todos os seus efeitos nocivos subsequentes, como fome, violência,
desorganização social. Por outro lado, uma pequena parcela de brasileiros
passou a lucrar como nunca, ampliando o fosso social que sempre dividiu o país.
Iremos expor abaixo alguns trechos da dissertação “O Grupo de Esquerda de Osasco”, que comentam justamente os efeitos desastrosos dos planos econômicos da
ditadura civil-militar para a classe trabalhadora brasileira.
“
O novo bloco histórico que se apossou do Estado brasileiro em 1964
assumiu a incumbência de superar a grave crise econômica que vitimava o país
desde inícios da década. Décio Saes define essa transição autoritária como uma
“contra-reforma destinada a criar as condições institucionais indispensáveis à
aceleração da acumulação do capital própria a uma etapa monopolista de
desenvolvimento capitalista”[1]. Com
esse objetivo, foi criado o Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica,
sob a direção inicial de Roberto Campos, ex-embaixador em Washington, técnico
com estreitos vínculos junto ao grande capital internacional, entenda-se o
estadunidense. Para o Ministério da Economia foi indicado Octávio Gouvêa de
Bulhões, economista que passara pela Escola de Chicago, egresso dos núcleos
decisórios do complexo IPES-IBAD. Para a superação da crise foi desenvolvido o
PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo), sob as ordens do General do
Humberto de Alencar Castelo Branco. O Programa pôs em prática “uma política de
recessão calculada, cujo sentido é o de preparar as bases institucionais para
um processo de concentração de capital que vinha se dando caoticamente. Não se
muda o padrão de acumulação, sustentado na expansão do Departamento III (...)”[2].
O plano estipulou como suas
principais metas o combate a inflação, a redução do déficit público, e a
retomada do crescimento econômico, sempre em bases monetaristas. A “politica de
recessão calculada” penalizou especialmente a classe trabalhadora, pois uma das
medidas adotadas pelo PAEG foi um severo controle salarial, logo apelidado de
“arrocho”. Foi posto em prática um drástico corte nos gastos públicos, algo que
também penalizou especialmente os setores populares; restringiu-se
consideravelmente o crédito, gerando falências em série, houve aumento sobre as
tarifas públicas, e elevação da taxa de juros. A rigor, a política da dupla
Campos-Bulhões foi altamente recessiva, jogou os trabalhadores no sub-consumo,
facilitou o processo de concentração de renda, privilegiando os grupos ligados
ao capital externo, condenando os setores industriais pequenos e médios a
bancarrota, ou a absorção por empresas com maior capacidade de resistência a
crise, com destaque para as multinacionais.
O ponto central do PAEG foi sem
dúvida seu programa de controle salarial. Tais ajustes não seriam possíveis
dentro do panorama pré-1964, em meio a um sistema que cada vez mais ampliava o
protagonismo da classe trabalhadora. Os expurgos iniciais desorganizaram os
movimentos sociais, e abriram terreno para as medidas recessivas dos governos
militares. Mas não bastava apenas impor a política do arrocho, era necessário
regulamentar a ofensiva patronal, dentro de um regime que buscou, durante toda
a sua existência, dar respaldo legal a suas medidas de exceção, mesmo em seus
períodos mais duros.” (p. 193-195)
(Tabela IV)
Evolução do salário mínimo
(1959-1970)
Ano
|
Salário mínimo real
|
Índice de salário real
|
Janeiro de 1959
|
1.735,29
|
100
|
Janeiro de 1960
|
1.204,03
|
69
|
Janeiro de 1961
|
1.475,00
|
85
|
Janeiro de 1962
|
1.406,38
|
81
|
Janeiro de 1963
|
1.304,35
|
75
|
Janeiro de 1964
|
724,14
|
42
|
Janeiro de 1965
|
840,00
|
48
|
Janeiro de 1966
|
849,42
|
49
|
Janeiro de 1967
|
744,02
|
43
|
Janeiro de 1968
|
737,88
|
43
|
Janeiro de 1969
|
732,62
|
42
|
Janeiro de 1970
|
724,91
|
42
|
Fonte: DIEESE
(Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).
Divulgação nº 1/76, p. 10, 19 de abril de 1976. Apud: MOREIRA ALVES, Matia
Helena. Op. Cit. p. 140. Dados parciais.
A tabela acima descreve em números o que os trabalhadores do período
chamaram de arrocho salarial. Notem que em 1967 o valor do salário mínimo
equivalia a 43% de seu valor em 1959; no ano seguinte, a situação não se
alterou, mas o rendimento nominal dos vencimentos foi ainda menor. Uma
comparação entre o custo de vida e o salário médio da categoria dos
metalúrgicos, indica que houve perda de 20% do poder aquisitivo na remuneração
desse setor no ano de 1965; 25% em 1966, 26% em 1967, e 27% em 1968. Esta tendência
vinha desde a década anterior, mas depois de 1964 se intensificou[3].
Sabe-se que a média de inflação durante toda a década de sessenta esteve na
casa dos 40%, embora o governo tenha maquiado essas cifras. O poder de compra
dos salários não acompanhava o ritmo da inflação, pauperizando amplos segmentos
da classe trabalhadora, especialmente os setores menos qualificados[4].
A política recessiva inaugurada com
o PAEG tinha como principal sustentáculo a repressão as classes populares e o
controle sobre os sindicatos. O saldo dessa política foi o aumento do
desemprego, da carestia de vida, da miséria absoluta; acentuação do êxodo
rural, trazendo consigo inchaço urbano e crescimento da violência. Estamos nos
referindo ao ciclo 1964-1968, sendo que o auge da recessão do período se
verificou no biênio 67/68, antecedendo o breve “milagre econômico”. (p. 207-208)
Sobre o FGTS,
“O ponto alto da ofensiva econômica contra os assalariados foi sem
dúvida a Lei 5.107, criada em 13 de setembro de 1966, posta em prática um ano
depois, instrumento legal que institui o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço). Antes da nova Lei, empregados demitidos sem justa causa tinham
direito a uma indenização, que equivalia a um mês de salário para cada ano
trabalhado na empresa. Havia também a obrigatoriedade do cumprimento de um mês
de aviso prévio antes da dispensa. Empregados com dez anos de casa tinham
direito a estabilidade. Esse sistema garantia a segurança dos assalariados no
que concerne a rotatividade nos postos de trabalho, e mantinha os salários em
patamares relativamente satisfatórios.
Após a lei 5.107, os empregadores
foram desobrigados a pagar indenizações aos funcionários dispensados, e foi
abolida a estabilidade. As dispensas em massa tornaram-se corriqueiras, e os
custos eram debitados dos salários dos empregados. Pelas novas regras, 8% dos
rendimentos mensais dos assalariados passaram a ser depositados no Fundo de
Garantia, valor a ser resgatado após dispensa imotivada. Notem que os
contratadores não arcavam mais com os custos das demissões, agora financiados
pelos próprios dispensados. O FGTS garantiu uma elevada taxa de turn over, e
possibilitou uma defasagem crescente nos índices salariais. O novo sistema
atendia sobretudo as exigências das empresas multinacionais, desejosas em
ampliar sua taxa de exploração da mais-valia e aumentar sua produção. O novo
Fundo também contribuiu “para a acumulação de capital, ao funcionar como fonte
de crédito para investimento por parte dos empregadores”[5].
A se somar a esse conjunto de fatores, uma Justiça do Trabalho inclinada a
ceder as pressões do patronato, as expensas de uma classe trabalhadora
super-explorada. (p. 195-196)
Insatisfação da sociedade e escalada autoritária,
"Ainda que a inflação tivesse baixado, em
relação ao ano anterior, de 87,8% para 55,4%, a política recessiva posta em
prática por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões jogou o país numa séria
recessão. Nesse mesmo ano, o setor industrial apresentou uma taxa de
crescimento negativa (-4,7%), o salário dos trabalhadores permaneceu congelado,
e uma onda de falências penalizou pequenas e médias empresas. Uma sondagem de
opinião pública, realizada na Guanabara, deu conta de que 63% dos inquiridos
desaprovavam as políticas econômicas do governo[6].
Tal insatisfação seria expressa nas eleições de outubro do ano em questão, que
deram vitória a Negrão de Lima na Guanabara, candidato que era alvo da
antipatia dos militares linha dura. O mesmo se verificou em Minas Gerais, com a
vitória de Israel Pinheiro.
A resposta de Castelo Branco,
pressionado pela linha dura, foi a decretação do AI-2 – fim dos partidos
políticos (...) "(p. 86)
Super-exploração,
“(…)
a notável disciplina imperante permitiu a muitas empresas elevar ao máximo a
intensidade do trabalho. Face a um rápido aumento da procura, o trabalho em
horas extraordinárias generalizou-se de tal modo que já se considera que a
jornada de oito horas, consagrada em lei,
foi na prática abolida na maioria das indústrias. (…) Em 1971, para uma
população ativa de 7,6 milhões de pessoas, foram registrados 1,4 milhão de
acidentes; em 1972, para 8 milhões de trabalhadores, 1,5 milhão de acidentes;
em 1973, para uma população ativa um pouco superior a do ano anterior, foi
registrado 1,6 milhão. Em números relativos, algo próximo da assombrosa taxa de
20% de ocorrências, um dos mais altos índices do mundo”. Revista Opinião, Nº 83, junho de
1974. Apud: SINGER, Paul. Op. Cit. p. 80-82.
(p. 295)
Como visto acima, a
grande vítima da ditadura civil-militar da ditadura (1964-1985) foi a classe trabalhadora,
que pagou diariamente com seu sangue pelos privilégios despudorados das elites golpistas.
Essa gente manteve as principais engrenagens do poder nacional em suas mãos. Há
cinquenta anos, a mais tênue perspectiva de perda de seus privilégios levou tal
grupo a tomar o poder pela força e voltar todas as estruturas do Estado contra
o povo. Essa mesma elite não pensará duas vezes para cometer o mesmo crime. O
que mostramos acima é uma pequena parte de todos os ataques da burguesia contra
os trabalhadores, há muito mais a se denunciar.
Este texto tem caráter de
alerta, não de previsão ou prognóstico, até por que não está a minha altura tal
empreitada. Apesar das semelhanças, a conjuntura de 2013 difere em muito da de
1964, a começar pelo fato de não nos encontrarmos em recessão econômica, num
panorama internacional de crise. Contudo, certos setores de nossa sociedade estão
prontos a encarar uma nova aventura golpista, de consequências imprevisíveis. É
preciso barrar essas forças, como dito acima, a conjuntura agora é outra, se
eles derem um golpe, os efeitos serão exponencialmente mais nefastos que os de
1964. Vamos ampliar esse debate.
[2]
OLIVEIRA, Francisco de. Op. Cit. p. 92. O Departamento I (indústria de
base) seguiu sendo abastecido por empresas multinacionais, após a recuperação
do ciclo recessivo, no “período que vai de 1968/71, a indústria de material de
transporte (na qual predomina a automobilística) cresceu 19,1% ao ano, a de
material elétrico (na qual se inclui a de aparelhos eletrodomésticos e a de
eletrono-domésticos) cresceu 13,9% ao ano, ao passo que a indústria têxtil (de
consumo predominante entre as classes populares) cresceu apenas 7,7% ao ano, e
a de produtos alimentares (idem) 7,5% ano e a de vestuário e calçado s(idem) 6,8% ao ano”. ANTUNES, Ricardo. Op. Cit. p.
107-108