sábado, 19 de junho de 2010

Os estádios são os templos modernos

Não existe fanatismo sadio



"Até a maneira de levantar a taça depois da vitória se assemelha a um acto litúrgico", observa o jornalista argentino Sergio Levinsky, autor do livro «Maradona, rebelde con causa». Para ele, de um entretenimento, o futebol impôs-se como estilo de vida, ponto nevrálgico da agenda quotidiana, e até eixo central da cultura popular. Por Luis Martinez Andrade
Estádio Santiago Bernabeu. Foto de ArchIM, FlickR
Estádio Santiago Bernabeu. Foto de ArchIM, FlickR

Tive o privilégio de conhecer Sergio Levinsky na Casa da Argentina, na Cidade Internacional Universitária de Paris, aquando de uma palestra que veio proferir sobre Diego Armando Maradona. Estava à espera que ele viesse contar anedotas sobre a semi-divindade do número 10 argentino. Mas apercebi-me rapidamente que ele tentava extrair o núcleo subversivo do futebol. Posteriormente, encontrámo-nos em diversas actividades académicas e foi numa destas ocasiões que o entrevistei, com o objectivo de avaliar as suas posições em torno do futebol mercantilizado pelo sistema capitalista.

Luiz Martinez: A faculdade que o futebol tem de reunir as pessoas, bem como a euforia que provoca levam certos intelectuais a estabelecer comparações entre o futebol e o fenómeno religioso. Fala-se das quantias em jogo e da violência que provoca, de um novo ópio para o povo, de mais um divertimento político, de mais uma causa de segregação social... Que relação estabelece entre a dinâmica do futebol e a sua mercantilização?

Sergio Levinsky : É evidente que nesta última fase de hiper-profissionalização, o futebol é uma indústria sensacional, uma espécie de maquinaria diabólica que aspira tudo e que adquire um estatuto quase religioso. Certamente, a crise dos valores e das crenças acomoda-se com o futebol para gerar uma adesão singular a partir da representatividade que uma camisola oferece, de um clube a que se adere. Os estádios podem ser vistos como os novos templos modernos. Até a maneira de levantar a taça depois da vitória se assemelha a um acto litúrgico. O facto de haver jogos todas as semanas ou até várias vezes por semana, o facto de os jogadores serem jovens e reais, tudo isto faz com que surja uma cumplicidade particular com os protagonistas.

Parece-me que o futebol, que era uma distracção, impôs-se como estilo de vida; em vários países, nomeadamente na América Latina, o futebol é o ponto nevrálgico da agenda quotidiana. O meu país, a Argentina, utiliza o futebol como eixo central da cultura popular. Por exemplo: «Patear la pelota afuera» significa deixar de lado uma coisa sobre a qual não queremos discutir, «dejar la pelota picando en la línea» (correndo ao longo da linha) significa facilitar a resposta a alguém, «dejarlo en offside» (deixar fora de jogo) significa pôr alguém em destaque.

Por outro lado, durante o mundial, na América latina, na África ou na Ásia, os exames são interrompidos nas escolas e nos liceus, os espectáculos e até os transportes públicos param. Em muitos países, o futebol consegue transformar-se também no principal mecanismo de ascensão social. O futebol permite escapar a um sistema injusto e, por vezes, alguém tornar-se milionário e até representante do povo susceptível de obter um reconhecimento público no mundo inteiro, graças aos média. O momento de maior crescimento do fenómeno começa, certamente, com a união do futebol com a televisão.

L.M. : Pardoxalmente, intelectuais como Eduardo Galeano, Manuel Vásquez Montalbán, Albert Camus, Pier Paolo Pasolini ou Roberto Fontanarrosa, entre outros, reivindicam não só o aspecto estético mas também o lado subversivo do futebol. Estou a pensar nos primeiros sindicatos na Argentina durante a ditadura: qual era o papel dos clubes?

S.L. : Infelizmente, a ditadura militar argentina – falo da última pois, desde 1930, houve uma por decénio – aproveitou-se do futebol para desviar a atenção sobre os massacres que estava a perpetrar. É verdade, que antes do Golpe de Estado de 1976, a Argentina já tinha sido escolhida para organizar o Mundial de Futebol de 1978 mas, por isso mesmo, era necessário controlar tal organização com a colaboração dos média e a censura que foi imposta à imprensa estrangeira, com o objectivo de orientar o rosto de falsa felicidade popular face ao sucesso desportivo. A ditadura, ao querer utilizar o futebol enquanto comércio simbólico, assegurou o controlo da Federação Argentina de Futebol (AFA) e não teve grandes dificuldades nesta empresa porque os dirigentes estavam habituados à corrupção. São conhecidos, por exemplo, os laços que uniam o contra-almirante Carlos Lacoste, o homem-forte do futebol dessa altura, com o Club River Plate ou ainda do general Guillermo Suárez Mason – perseguido por crimes contra a humanidade, diga-se de passagem – com o Club Argentino Juniors.

L.M. : Max Weber sublinha que os chefes ou os dirigentes religiosos têm um papel profético, isto é, desencadeiam movimentos ou rupturas no sistema social. Nesse sentido, permita-me que evoque a cena de Pelé que fez a publicidade do Master Card ou Maradona que participou na marcha anti-Bush. Como explica os laços entre o caudilhismo desportivo e o clientelismo político na América Latina?

S.L. : Isso é verdade até um certo ponto. Como disse, o futebol é mais do que um simples divertimento – como o poderia ser o cinema, o teatro, a música, por exemplo – pelos seus elementos litúrgicos adaptados à era dos média de massas que aumentam a visibilidade dos protagonistas e permitem a milhões de indivíduos frustrados com a sua situação pessoal (económica e social) encontrar no futebol um modo de redenção e de triunfo simbólico. A sua questão refere-se a duas vias possíveis: por um lado, Pelé, que já se encontra submergido por uma maquinaria industrial infernal e, por outro, Maradona que se revolta utilizando e denunciando, com a ajuda do poder mediático, a perversidade do sistema. George Weah poderia ter sido presidente da Libéria, bem como outros futebolistas que se converteram à política ou criaram associações de ajuda às populações pobres e marginais.

L.M. : O fenómeno do hooliganismo, 'barras bravas' ou 'torcidas' – na América do Sul – provocou novas divisões entre os indivíduos, isto é, produziu a ilusão segundo a qual o inimigo de um apoiante é o apoiante de um outro clube. A indústria desportiva e os proprietários dos clubes e das cadeias televisivas consolidam as suas posições de classe dominante, enquanto que os apoiantes que são, no fim de contas, operários, estudantes ou desempregados lutam entre eles por causa de uma identidade manipulada. Os apoiantes e os ultras das claques não têm consciência de que poderiam unir-se para exigir, não a melhoria do futebol espectáculo, mas a sua destruição, contribuindo assim para a construção do edifício revolucionário.

S.L.: Num sistema perverso como é o futebol espectáculo, torna-se difícil imaginar uma união dos apoiantes para exigir melhorias do espectáculo. Poderia acontecer e até aconteceu com grupos minoritários nos países desenvolvidos com um nível cultural elevado. Deve-se levar em conta o facto de que a violência nos estádios, ao provocar medo no espectador médio, incita-o a ficar diante da televisão em vez de ir ao estádio; de maneira que as grandes cadeias de televisão que possuem os direitos de transmissão, como a Televisa, a TV Globo ou a Torneo y Competencias tiram proveito indirectamente desta violência.

Observa-se na Argentina um fenómeno que se exporta graças à televisão: a violência no interior dos ultras, uma violência entre apoiantes da mesma equipa. Isto explica-se através da luta por bilhetes preferenciais atribuídos pelos dirigentes dos clubes, a venda de droga, as deslocações e o facto de o controlo de um grupo de ultras conferir um poder mediático e influências políticas. Lembro-me de um provérbio que me ensinou Rafa Dio Zeo – o ex-dirigente dos Ultras de Boca Juniors: “Ter o poder é ter o número de telefone dos que têm o poder”. De uma maneira geral, o conflito no interior dos ultras implica uma profunda mudança contextual pois já nem se torna necessário o ritual do jogo para justificar a violência.

L.M. : Justamente, ao reflectir nos elementos religiosos que evocou, como é que imagina a relação épica entre um povo (ou apoiantes) e o seu clube ou a sua equipa nacional? Estou a pensar na equipa do Barcelona quando jogava contra o Real Madrid na época franquista, na vitória da Argentina face à Inglaterra aquando da Taça do Mundo de 1986, depois da Guerra das Malvinas, ou no Senegal que venceu a França durante o mundial Coreia-Japão, em 2002.

S.L. : Aquando de um jogo decisivo, a representatividade torna-se muito importante. Mais do que qualquer outro desporto, o futebol é uma espécia de guerra sublimada. Os hinos e as camisolas, a delimitação do terreno onde se afrontam as equipas, a luta física entre vencedores e vencidos evocam a ideia de «guerra». Nesse sentido, o intelectual espanhol Vicente Verdú afirma que o único objectivo é triunfar num terreno inimigo para depois vir narrar, na sua terra, o triunfo. Isto é verdade enquanto mitologia e é esta a razão pela qual o livro dele se intitula "Fútbol, mitos, ritos y símbolos"; os futebolistas são os depositários simbólicos das aspirações, do imaginário dos povos.

Aquando da Taça do Mundo de 1986 no México, quatro anos depois da guerra das Malvinas, o triunfo da Argentina face à Inglaterra foi festejado de maneira particular: foi ressentido como uma vingança sobre o povo «inimigo» e o golo com a juda «da mão de Deus» de Diego Maradona era como se fosse «roubar o gatuno» e reparar, desta maneira, um sentimento de injustiça.

L.M.: No processo de mercantilização da imagem e da produção de ídolos, como provocar uma ruptura entre o futebol e o capitalismo? Parece-me que o Barcelona da Nike é a mesma coisa que o Real Madrid da Adidas. O poder das marcas, ou melhor o capital ao penetrar na dinâmica do futebol contribuiu para a corrupção de uma das actividades mais poéticas da Terra: o futebol.

S.L.: É evidente que o futebol ultraprofissional dos nossos dias faz parte de uma enorme indústria contruída em torno de um desporto que se tornou espectáculo; primeiro os jogos e, depois, as conversas que geram. Umberto Eco evoca muitas vezes estes debates futebolísticos que se tornaram tão populares como o próprio futebol.

Enquanto existir o capitalismo, o futebol não poderá ser considerado como um desporto normal que contribui para o bem-estar humano. O simples facto de ser uma actividade remunerada transforma a actividade lúdica num trabalho e a sobrevivência da indústria depende dos resultados desse trabalho. Esta tensão anula até a própria ideia elementar de «jogo». Talvez seja severo, mas creio que o futebol mais sadio, o mais puro, só pode ser visto nos parques e nas praças, nunca nos estádios. Neste último, são outros interesses que entram em linha de conta.

Sergio Levinsky é autor de « Maradona, rebelde con causa » (8 edições), « El negocio del fútbol » e « El deporte de informar ». Em 1996, recebeu o Prémio Nacional de Jornalismo e Saúde do Laboratório Merck, Sharpe&Dohme.



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