Abdias Nascimento
Rio de Janeiro - “Eu sempre fui um negro desaforado”, admite o intelectual, artista e ativista, Abdias Nascimento, de 95 anos, pontuando sua indignação diante dos critérios que desde o período colonial definem papéis diferentes para negros, brancos e índios, no Brasil e no mundo. O depoimento consta de uma biografia lançada nesta semana. Dividida em dez capítulos, apresenta a trajetória de Abdias desde a infância, no interior de São Paulo, aos discursos e ideias combativas apresentadas, inclusive, no Congresso Nacional.
Há relatos sobre a participação dele em movimentos políticos da década de 1930, os desafios da vida em uma São Paulo racista, os primeiros congressos de negros no país e as experiências no Rio, onde a militância é marcada pela criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) – uma forma revolucionária de denunciar o racismo, merecedor de um capítulo à parte. Abdias fez mais do que levar negros aos palcos (neste caso, o Teatro Municipal), a iniciativa transbordou para experiências político-culturais, que garantiam escolaridade e conscientização aos negros, dentre os quais empregadas domésticas e estivadores.
Tendo deixado o Brasil na ditadura militar, a biografia trata da convivência do ativista com o movimento pelos direitos civis, nos Estados Unidos, e com brasileiros como Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, além de uma produção artística e literária, questionadora do padrão eurocêntrico. De volta ao país, 15 anos depois, lembra a atuação de Abdias como deputado e senador, na defesa dos direitos fundiários das comunidades quilombolas, do ensino da cultura afro-brasileira e africana e medidas para diminuir as desigualdades raciais no mercado de trabalho e nos bancos escolares.
São passagens repletas de relatos do próprio Abdias, coletadas em entrevistas e em outros livros, pela jornalista Sandra Almada. E, como não poderia deixar de ser, inevitavelmente revelam mais sobre o ativismo dos negros no Brasil, desde o período colonial aos dias atuais, além de tratar dos esforços de combate ao racismo no âmbito mundial, o pan-africanismo. “Ainda há tudo por fazer. O negro ainda está no marco zero de uma caminhada para a verdadeira liberdade. Ainda sou indignado com isso”, disse Abdias, com total lucidez, no lançamento de sua biografia.
Não fica de fora da obra a influência do líder sobre uma nova geração. Perguntado sobre o despertar de sua consciência sobre a exclusão social dos afro-brasileiros, o rapper MV Bill responde à autora da biografia: “Li, na adolescência, o livro O Negro Revoltado, de Abdias Nascimento”. Segundo Sandra Almada, o depoimento é colocado propositalmente no livro, para aproximar a juventude de Nascimento. “É possível que ideias de alguém que nasceu em 1914 façam alavancar a luta de nova gerações”, afirmou durante o evento.
O escritor Nei Lopes também pontua a importância do intelectual para a organização de reivindicações históricas e das transformações das últimas décadas. “Abdias é o elo maior do nosso movimento negro, levando em conta que ele é do início do século passado, quando a discriminação era ainda mais clara. Mesmo hoje, um pouco debilitado (pelas condições de saúde), quando ele abre a boca, sabemos que é o nosso baobá (árvore sagrada no candomblé), guarda toda a vida e história de nossa africanidade.”
Ao apresentar o grandioso legado desse intelectual, a biografia de Abdias Nascimento é, sobretudo, uma compilação de ideias para enfrentar o racismo e as desigualdade raciais, além de um convite para permanente mobilização social, independente de raças.“Enquanto houver um descendente de africano nessa situação de pobreza, miséria e de opressão, eu me sinto atingido, pois o racismo não é um coisa pessoal”, afirma o líder negro, em um dos seus depoimentos.
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