O futuro da música passa pela África
O retorno à África proposto no milênio passado pelo pensador jamaicano Marcus Garvey (1887-1940) está em curso neste exato momento. E se dá pelo viés da música. Claro que as maiores contribuições musicais do século XX já haviam sido alimentadas pela sonoridade africana: jazz, blues, rock n’roll e todas as variações dos temas surgiram através dos batuques, sobretudo via Estados Unidos.
Mas agora, países como Quênia, África do Sul, Nigéria, Serra Leoa, Etiópia e Ruanda dialogam com a cultura pop ocidental sem o ranço do exotismo, isso do mainstream ao indie rock, numa flagrante reafirmação de consistência artística.
O chamado afro-boom atual foi tema de uma reportagem recente do jornal The New York Times. A reportagem direciona holofotes ao Mali, localizado na África ocidental subsaariana, com apenas 14,5 milhões de habitantes – menos de um décimo da população da Nigéria. O escriba lembra que a gravadora indie norte-americana Sub Pop, berço das bandas grunge dos anos 1990, responsável pelo lançamento dos discos de Mudhoney, Nirvana, Tad e outros tantos cabeludos barulhentos, hoje tem um selo voltado ao manancial do continente, o Next Ambiance, dirigido pelo etnomusicólogo Jon Kertzer. O grupo Bassekou Kouyate & Ngoni BA, a quem o jornal britânico The Independent chamou de “a melhor banda de rock and roll do mundo”, é uma das estrelas do selo.
Som do Mali: Bassekou Kouyate & Ngoni BA
Há uma série de fatores responsáveis pela (re)descoberta da Mãe África sonora. As compilações de pequenos selos como o norte-americano Nonesuch, o francês Buda Musique – que reedita a série Ethiopique, com a fina flor da produção etíope e eritreia –, e o inglês Soul Jazz têm papel fundamental na difusão da batucada. No decorrer das décadas, artistas brancos também prepararam o terreno para os negros em tempos de indústria fonográfica conservadora, pra não dizer racista.
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Para parte da crítica britânica, a maior banda de rock do mundo é do... Mali: destaque para Bassekou Kouyate & Ngoni BA.
Em 1971, Ginger Baker, baterista do Cream, ao lado do guitarrista Eric Clapton – que faria uma versão de “I shot the sheriff”, dos ainda desconhecidos Bob Marley and The Wailers, em 1974 – e do baixista e cantor Jack Bruce, desembarcou em Lagos, na Nigéria, com a intenção de viajar pelo país e construir um estúdio de gravação. A aventura pode ser vista no ótimo documentário Ginger Baker – In Afrika (ST2) ou ouvida no disco Fela Ransom-Kuti and The Africa '70 with Ginger Baker Live! (1971), onde Baker eterniza sua amizade, iniciada no final dos anos 1960, com o inventor do afrobeat, o multiinstrumentista e ativista político Fela Kuti.
O polivalente Fela Kuti
Nos anos 1980, o norte-americano Paul Simon se reinventou ao trabalhar com o grupo vocal sul-africano Ladysmith Black Mambazo. O resultado da parceria foi o disco Graceland (1986), ganhador de três prêmios Grammy e presente na lista dos 200 álbuns definitivos no Rock and Roll Hall of Fame. Em sua fase pós-The Clash, banda que já adicionava elementos da sonoridade afro-caribenha ao punk rock, o cantor e guitarrista Joe Strummer, nascido na Turquia, aprofundaria ainda mais seu interesse terceiro-mundista.
Também associados ao punk e à new wave, os norte-americanos do Talking Heads foram outros dos atingidos em cheio pela sonoridade das savanas. O álbum Remain in Light (1980) é prova disso. No mesmo ano de lançamento do disco da turma de David Byrne, o inglês Peter Gabriel, ex-Genesis, lamentou o assassinato, ocorrido em 1977, do ativista do movimento anti-apartheid na África do Sul, Steven Biko, com o single “Biko”. Parceiro do senegalês Youssou N'Dour, Gabriel é um dos fundadores, e continua à frente, do Womad Festival, respeitado evento de world music.
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Também do Mali, a dupla Amadou & Mariam.
Num corte rápido para os anos 2000, encontra-se o inglês Damon Albarn, revelado em meio ao britpop noventista como integrante do Blur. Em 2002, Albarn produziu Mali Music, álbum com a participação de músicos como Afel Bocoum, Toumani Diabaté e Ko Kan Ko Sata. No ano seguinte, surgiu com um projeto estelar intitulado The Good, the Bad & the Queen: Paul Simonon, baixista do The Clash, Simon Tong, guitarrista e tecladista do The Verve, e o nigeriano Tony Allen, baterista e diretor musical de Fela Kuti nos primórdios do afrobeat.
Parlotones, na cerimônia de abertura da Copa
Sim, houve um longo processo para que os modernos, ligados ao indie rock e fãs dos norte-americanos do Vampire Weekend, por exemplo, pudessem declarar seu amor à África e aos ritmos que por lá fervilham sem serem ridicularizados – isso já aconteceu, acreditem. Crédito também para a realização da Copa do Mundo de 2010, sediada na África do Sul. Na cerimônia de abertura, dividindo o palco com Alicia Keys, Shakira e Black Eyes Peas, lá estavam os sul-africanos The Parlotones, BLK JKS e Vusi Mahlasela, e os malineses Amadou & Mariam e Vieux Farka Touré, além de Angélique Kidjo, no Orlando Stadium de Soweto, em Johanesburgo.
Brasil
No Brasil, como não poderia deixar de ser, o interesse pela música africana vem de longe e atravessa ciclos definidos. Do samba de terreiro à afro-brasilidade profunda de Moacir Santos, Noriel Vilela e Pedro Santos, passando pelo disco Selvagem? (1986), dos Paralamas do Sucesso, e pelo acento afrobeat/dub dos álbuns da cantora Céu, opções de deleite não faltam ao ouvinte da terra brasilis.
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O etíope Mulatu Astatke apresentou-se recentemente em São Paulo.
O país, inclusive, recebeu um dos gênios da matéria, nos dias 19 e 20 de março: o etíope Mulatu Astatke, que fez shows concorridíssimos no Sesc Vila Mariana, em São Paulo – os ingressos esgotaram-se em duas horas. Isso sem contar festas temáticas, como a paulistana Chica Chica Bum, das estudiosas DJs Ju Salty e Haru que, em recente edição, teve a performance ao vivo do grupo revelação Bixiga 70, nome que remete ao The Africa’70 nigeriano. É como alertou o músico Femi Kuti, herdeiro de Fela, em sua segunda passagem pelo Brasil em dezembro de 2010: a África não eve ser esquecida.
Se depender dos aficionados por música isso vai ser difícil de acontecer. Afinal, o continente, considerado o berço da civilização, tem lá os seus problemas – que não são poucos –, mas resplandece do ponto de vista estético. O retorno é inevitável.
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