quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Como os “mercados livres” matam milhões todos os anos



O ano de 2008 foi marcado por uma crise alimentar que arrastou mais 200 milhões de pessoas para a fome, revertendo os resultados de uma década de avanços na luta contra a fome.
A crise mostrou-nos de forma cruel o resultado da crescente instabilidade deste mundo em que vivemos, marcado pela entrega da produção a mercados financeiros voláteis, pela precarização das relações laborais e pelas alterações climáticas. Quando se juntam todos estes factores de instabilidade, temos um ciclo de pobreza e uma sucessão de crises ambientais, económicas e sociais que se acumulam, complementam e reforçam. Os factores de instabilidade não desapareceram, pelo que se espera de novo um aumento da fome no mundo.
O ano que passou ficou empatado com 2005 no lugar do ano mais quente de sempre. Dezanove países registaram temperaturas recordes, um número sem precedentes, com o Paquistão a registar a temperatura mais elevada alguma vez medida na Ásia. O ano de 2010 marcou também um novo recorde de extremos climáticos, destacando-se as inundações no Paquistão e na Austrália e a onda de calor na Rússia. As consequências destes desastres “naturais” sem precedentes também se fazem sentir na produção alimentar dos países afectados, tendo alguns países, como a Rússia, banido as exportações de cereais.
Quando um país sofre uma quebra significativa na sua produção alimentar, apenas poderá evitar uma diminuição na quantidade de calorias ingerida pelos seus habitantes se tiver recursos para importar alimentos. A mesma catástrofe climática terá, portanto, um impacto muito diferente num país rico ou num país pobre. Mas nos anos recentes há um factor ainda mais importante do que a variação da produção na determinação de quantos seres humanos morrem à fome por ano: a especulação com os preços.
O segundo semestre de 2010 foi marcado por um enorme aumento na especulação com bens alimentares essenciais. Num período sem grandes mudanças na procura ou na oferta mundiais, o custo dos bens alimentares subiu em 32%, de acordo com a FAO. No mesmo período, o preço do trigo aumentou em 70%, apesar de os stocks mundiais se terem mantido estáveis. Em cada mês deste semestre, o aumento do índice de preços dos alimentos registou um novo recorde, um cenário que se repetiu em Janeiro deste ano.
Na raiz deste pico na especulação com commodities está a crise financeira. De cada vez que uma bolha especulativa rebenta, o preço da maior parte dos activos desce a pique, pelo que os especuladores ficam com muito dinheiro na mão sem ter muitas opções rentáveis onde o aplicar. A consequência é um aumento na especulação com activos cujo rendimento seja mais seguro, nomeadamente os baseados em bens energéticos ou alimentares. Assim, não só o laço entre produtores e consumidores de alimentos é quebrado pelo jogo bolsista como os custos de produção de alimentos se encontram à mercê das flutuações do mercado de petróleo. No fim, temos um mundo em que se torna cada vez mais ténue a relação entre o preço final dos alimentos e as flutuações nas variáveis climatéricas, como a temperatura e a pluviosidade.
Para Olivier De Schutter, Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, a especulação com bens alimentares foi a principal causa da crise alimentar de 2007-08. As ONGs de desenvolvimento resumem o problema com uma fórmula simples: não é uma questão de não ter que comer mas antes de não ter dinheiro para comprar comida. Estamos claramente perante uma manifestação extrema da desigualdade no acesso aos recursos naturais.
No centro de toda esta miséria, estão as grandes multinacionais que dominam grande parte da produção alimentar. As políticas seguidas pelas instituições internacionais nas últimas décadas, como a Revolução Verde, a abertura das fronteiras dos países do Sul, o reforço dos subsídios agrícolas nos países do Norte e as medidas de liberalização do sector agrícola, tiveram como resultado a destruição de grande parte do aparelho produtivo baseado na agricultura de pequena escala e a sua substituição pela agricultura intensiva de grande escala.
O aumento da produção alimentar conseguido com a intensificação da agricultura trouxe significativos aumentos na produtividade agrícola, mas a fome continuou a aumentar. A generalidade dos países menos desenvolvidos passaram de exportadores a importadores de alimentos e a sua população rural passou por um processo de proletarização, sendo cada vez mais composta por trabalhadores mal remunerados. Enquanto as empresas do sector agro-industrial registam aumentos nos lucros ano após ano, quase um bilião de pessoas no mundo passa fome porque não tem como comprar alimentos nem como os plantar. O cúmulo do escândalo atinge-se quando são estas as empresas que fornecem alimentos às agências de ajuda humanitária, aproveitando inclusive para escoar a sua produção de sementes geneticamente modificadas.
O caso da Somália mostra como a ganância do lucro, a volatilidade dos mercados desregulados e os extremos climáticos se podem conjugar para criar o inferno na terra. Uma seca extrema levou a que a proporção da população dependente de ajuda externa para sobreviver tenha aumentado para um terço. Em algumas regiões, estima-se que 30% das crianças estão seriamente sub-nutridas. Isto apenas um ano depois de o país ter registado uma boa colheita. Quem ainda pensa que o capitalismo pode resolver o problema da pobreza em que vive a maioria da humanidade deveria colocar lá os seus olhos.




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