Grupo de extermínio pago pela sociedade, voltado contra essa mesma sociedade.
O fato de um dos responsáveis pelo massacre do Carandiru, homem que responde por mais de 70 mortes, ter sido promovido a comandante da ROTA, elucida tudo.
Por Ronan, Passa Palavra
A gestão de qualquer área ou instituição depende de uma série de acordos. Seja uma penitenciária, escola, manicômio ou centro cultural, há sempre uma previsão sobre como as coisas ocorrerão. Não se trata puramente de acordos explícitos. Na maioria dos casos o que ocorre é um acordo tácito, algo dado sem ser dito, sobre quais são as regras do jogo, como agirão os protagonistas. A atual guerra particular entre policiais e criminosos em São Paulo faz recordar essa observação básica. Se de uma hora para outra há um surto de violência, tendemos a especular sobre o que mudou nos procedimentos que envolvem a gestão da segurança pública e que servem para manter a relação entre policiais e bandidos num nível menos sangrento e mais racional.
Nem mesmo os jornalistas que cobrem a área, cheios de informantes e dados que os comuns não possuem, não conseguiram chegar a um entendimento exato do que se passa hoje. O governo Alckmin se recusa a dar esclarecimentos dignos desse nome, cobre os fatos com retóricas do dia, algumas tão estapafúrdias, que o governador chegou a declarar que o PCC [Primeiro Comando da Capital] era uma lenda. Apesar disso, a guerra segue e os efeitos são nefastos para toda a população. Um dado que explicita que há uma guerra particular com a polícia é que, diferentemente dos ataques do PCC de 2006, os agentes penitenciários não foram inclusos no alvo dos criminosos. Embora sejam muito mais fáceis de serem atingidos, não são eles o foco. Também não estão sendo atacados bombeiros, nem forças municipais. O que evidencia que não é um quadro de enfrentamento do Estado em si, mas um conflito realmente focado e com motivações circunstanciais.
Diante do que dispomos é preciso pontuar que o atual cenário está ligado ao fato de homens truculentos da polícia militar terem chegado ao alto escalão da segurança pública, o que levou à ascensão da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar) e à apologia de uma política mais letal, isso tudo num contexto de policialização da política (coronéis como subprefeitos de 30 das 31 subprefeituras, militares eleitos como vereadores). O atual secretário de segurança, Antônio Ferreira Pinto, principal dos secretários de Serra a prosseguir no governo Alckmin, é homem de carreira da polícia militar e abertamente defensor de métodos duros. Conforme André Caramante, sua assunção do cargo significou uma centralidade para a ROTA na estratégia de controle das ruas. Houve promoção de homens que, ou são diretamente da ROTA, ou possuem ligação estreita com a mesma e com o ideário que ela representa. O fato de um dos responsáveis pelo massacre do Carandiru, homem que responde por mais de 70 mortes, ter sido promovido a comandante da ROTA, elucida tudo.
Um quadro como esse nos faria supor que, com tantos homens duros no comando, a criminalidade esteja, enfim, recuando. Ao contrário da retórica dos durões, nem uma palha sequer foi movida na economia criminal. Os pontos de venda de drogas permanecem funcionando, com o devido pagamento aos policiais, o Estado está recheado de bares com máquinas caça-níqueis, o jogo do bicho tem tanta liberdade que já cobra com máquinas eletrônicas, os bingos e casas de jogos clandestinos pipocam por toda São Paulo, permanecem os roubos de carros, roubos em restaurantes, assaltos a condomínios, assaltos a carros fortes, assaltos a empresas de transporte de valores, explosão de caixas eletrônicos e roubo de cargas. A situação é tal que uma carga da Apple de 3,9 milhões de reais foi levada do aeroporto de Campinas num dia em que havia operação especial da polícia na cidade. Em muitos dos crimes há comprovada participação de policiais, ou como homens de ação ou como recebedores de propina.
Se a economia criminal não foi tocada em nada, qual a razão da primavera sangrenta, o que a justifica? Foram mais de 85 policiais mortos até agora, a maioria fora do serviço. A quantidade de criminosos mortos é bem maior e de civis vitimados também. Acompanhando pelos jornais, a guerra começou depois que a ROTA passou a emboscar criminosos, assassinando-os em sequência (não se sabe qual o critério de seleção). Com dados colhidos via investigação e bandidos cooptados, descobrem um plano de assalto, uma reunião de bandidos e os emboscam, levando-os à morte. Diante da fatalidade da morte, sem oportunidade do processo legal, os criminosos começaram a reagir e iniciou-se a matança de policiais. Toda uma guerra foi deflagrada por conta da aplicação de métodos particulares, inconstitucionais e sangrentos, caros a um batalhão da polícia e apoiados pelo secretário. Com a explosão dos homicídios, sem resultados efetivos quanto à queda da criminalidade, a população está pagando um preço muito alto para atender aos preceitos de uma parcela da PM. Talvez à visão particular de uns poucos.
A guerra, como não poderia deixar de ser, tem resultado em danos para a população, expectadora e vítima dos acontecimentos. A polícia, obviamente, não prende nem assassina os mais de 40 milhões que vivem no Estado de São Paulo, mas de acordo com a forma como atua impõe maior ou menor medo aos populares. Iniciada a guerra, virou padrão que logo após o assassinato de um policial ocorram vários homicídios na localidade em que o militar foi morto. Policiais à paisana, em carros, em motos, alguns encapuzados, saem logo em seguida matando pessoas para vingar a morte do colega tombado. Nesse processo, não são poucos os civis vitimados, logo taxados como bandidos pela mídia apressada e cínica. Quem não leva tiro tem a liberdade tolhida. Quando não há toque de recolher imposto pelos policiais, a própria sensação de medo se encarrega de manter todos em casa. Em vários cantos, basta estar em um bar depois de certas horas para se tornar um possível alvo.
Até o momento, o atual secretário de segurança, Antônio Ferreira Pinto, ficou imune às críticas e notícias veiculadas pelos jornais. Ao contrário, a queda veio do lado dos críticos. Um jornalista da Folha de São Paulo, André Caramante, foi obrigado a se exilar do país por conta das ameaças recebidas depois que publicou matéria a respeito da truculência do Coronel Telhada no Facebook – há mesmo todo um debate feito nos bastidores sobre se o governador não se tornou refém do secretário herdado de Serra e da ala dura que o cerca. Se um jornalista da Folha de São Paulo é obrigado a se exilar, podemos imaginar o que ocorre com o jovem da periferia que encara a brutalidade policial fora dos holofotes.
O caso tem servido, dentre outras coisas, para demonstrar na prática como os freios constitucionais contra a violência policial não funcionam no Estado de São Paulo. Defensoria pública, conselho tutelar, ouvidorias, nenhuma das instituições tem servido para parar a guerra que vitima pessoas alheias e amedronta a todos. São nas redes sociais, nos bares, nos bairros (quando há), nas organizações de vítimas da violência militar e nos saraus que se tem buscado dar uma resposta para a primavera sangrenta. No geral, como em tantas outras coisas, o povo teve que se virar e vai criando estratégias para sobreviver: voltando junto do trabalho, não saindo depois de tal horário, evitando dadas localidades.
Deve-se chamar a atenção para a forma como grossa parte da esquerda, meio artístico e intelectual, praticamente fugiu do assunto, fazendo de conta que não há uma guerra, com muitos inocentes vitimados e toda uma população afetada. De uma parte isto se deve ao distanciamento quanto ao cotidiano dos comuns, de outro, há mesmo certo elitismo que só pronuncia a palavra ditadura quando a vítima era um quadro, pessoa que ia ser alguém na vida. Mas, também, há o caso infeliz de a guerra se passar em ano eleitoral e o cabresto partidário da esquerda evitar que ela se pronuncie para não ser associada pelos opositores com o crime, não correr o risco de ser acusada de defender bandidos. Diante dos interesses eleitorais desta esquerda, os populares ficaram, mais uma vez, sozinhos.
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