José Serra nem venceu as eleições e já cumpriu uma de suas promessas de campanha. Nos idos de setembro, ao ser pressionado sobre sua falta de plano de governo, o candidato do PSDB à prefeitura de São Paulo disse que apresentaria o documento durante o 2° turno. Na segunda-feira, faltando treze dias para o duelo eleitoral com Fernando Haddad (PT), a cúpula do tucanato paulista abarrotou uma das salas do Cine Livraria Cultura, na Avenida Paulista, para o lançamento oficial do programa de José Serra. Em seu pronunciamento, porém, o candidato pouco falou de propostas: preferiu saudar colegas, atacar o rival petista e lembrar feitos passados. Depois, saiu apressado sem falar com a imprensa.
- Leonel Brizola dizia uma coisa que é verdadeira: programa compra-se pela internet. Monta-se uns grupos, o sujeito escreve, o candidato fica se informando sem saber direito do que está tratando. Programa é assim: em geral não tem muito conteúdo, não vale muito no Brasil – menosprezou José Serra, fazendo referência ao ex-governador do Rio de Janeiro, morto em 2004. “O PT ganhou prestígio no governo federal porque não cumpriu o programa que apresentou em 2002. Às vezes essa coisa de programa é tão exótica que quem não cumpre é aplaudido por isso: propunha tanta bobagem que quando chega e não faz bobagem, essa passa a ser uma virtude. São circunstâncias da vida”.
De acordo com o tucano, um dos elementos mais importantes de um programa de governo são as prioridades. “Quando tudo é prioritário, nada é prioritário”, ensinou. “Para governar é preciso escolher – e isto o PT tem horror de fazer, e nós temos gosto de fazer, porque isso significa viabilizar as coisas.” No entanto, durante sua meia hora de discurso, José Serra não elencou uma só proposta prioritária. O candidato do PSDB fez apenas duas menções a projetos que pretende executar na capital caso seja eleito.
Um deles é o bolsa-creche, espécie de auxílio financeiro para mães que estiverem aguardando vagas para seus filhos nas creches da cidade. A medida foi originalmente proposta pela candidata derrotada no primeiro turno, Soninha Francine, do PPS, e acabou sendo englobada pelo tucano neste 2° turno. “Copiar, na vida pública, não é plágio, é virtude”, justificou. “Coisa boa a gente copia.” Outro projeto citado pelo tucano foi aumentar a integração com o governo do estado, atualmente ocupado por seu correligionário Geraldo Alckmin, em todas as áreas da administração pública. “São Paulo tem duas prefeituras: a estadual e a municipal”, repetiu. “A estadual é totalmente responsável pela segurança, pelos trilhos e saneamento, além de metade da saúde, metade da educação e outro tanto da habitação. Então, tem que funcionar junto, com a gente ajudando. A parceria é fundamental”.
O plano de governo tucano tampouco enumera prioridades. O documento possui 70 páginas e tem uma tiragem de dois mil exemplares. Está composto por três seções. Na primeira, a coligação Avança São Paulo (PSDB, PSD, PR, DEM e PV) traz uma carta de José Serra aos eleitores, reconhece os avanços das últimas duas gestões da prefeitura e esboça os desafios para o futuro. Na segunda parte vêm as propostas propriamente ditas, divididas em 15 temas: saúde, educação, transporte, habitação etc. Por fim, a candidatura publica uma longa lista de colaboradores – gente que auxiliou na elaboração do programa.
- Montamos vinte grupos de trabalho que ouviram técnicos, especialistas e educadores. Foram mais de 120 reuniões, nas quais participaram mais de duas mil pessoas – contabilizou Hubert Alquéres, coordenador do programa de governo do PSDB. “Tivemos ainda contribuições que vieram pela internet, e nosso vice-governador, Guilherme Afif Domingos, coordenou a caravana Avança São Paulo, que percorreu inúmeras regiões da cidade, nas 31 subprefeituras, para ouvir as demandas da população.” Alquéres destacou a rigorosidade de José Serra ao analisar todas as propostas do plano antes de aprová-las e anunciou que o documento não possui nenhum projeto publicitário. “Estamos preocupados em articular as ações. Nosso programa tem preocupação em ter propostas factíveis, com âncora no orçamento”.
O prefeito Gilberto Kassab (PSD) – que assumiu o governo paulistano após a saída de José Serra, em 2005, e foi reeleito em 2008 – discursou em apoio ao antecessor, dizendo que o tucano recebeu São Paulo mergulhada no caos deixado por Marta Suplicy (PT). “Agora a cidade terá mais um instrumento para comparar as candidaturas”, anotou. “Que possamos daqui a alguns dias ter esse plano de governo como Bíblia da nossa cidade, porque é esse o documento que vai continuar as grandes transformações iniciadas por você oito anos atrás e que vai fazer com que São Paulo cada vez mais seja o orgulho dos paulistanos e referência para o Brasil e para o mundo”.
E tem mais, em se tratando de Serra, sempre tem mais...
Serra sabota ate o próprio passado
Em meio ao contravapor das pesquisas, o tucano enfrenta um desgaste de fundo. Quanto mais se expõe, mais se configura o teor de uma trajetória em que as dissimulações se sucedem, como as cascas de uma cebola.
Essa é a grande dificuldade dos seus marqueteiros: hoje o tucano compõe aos olhos da população um personagem cada vez mais desconectado de sua fala; as atitudes ecoam mais alto do que a voz e desautorizam as promessas.
O acúmulo tende a consolidar uma imagem que se move de forma autônoma.À revelia do arsenal publicitário calcifica-se o perfil de um político que sabota até o próprio passado na busca sôfrega pelo poder.
Mudar isso é como enxugar o chão com a torneira aberta.
Carrega-se na maquiagem aqui, arruma-se um beijo inverossímil ali. Em seguida, a realidade irrompe como um vento inoportuno a sabotar o controle do incêndio.
O 'progressista', descobre-se mais adiante, teve atuação regressiva nas votações relativas ao direito do trabalhador, segundo levantamento do DIAP.
O 'desenvolvimentista', soube-se de fonte insuspeita, foi um dos mais empenhados defensores das grandes privatizações do ciclo tucano, caso da Vale do Rio Doce, por exemplo. Testemunho de FHC nas eleições de 2010.
O propalado 'arrojo administrativo' reduz-se ao cacarejar de galinha velha: faz barulho mas não bota. Juntos, Serra/Kassab completaram oito anos de um condomínio administrativo que objetivamente destratou SP; agora recolhe o saldo de uma rejeição estrondosa: 45% da cidade reprova a gestão consorciada.
No episódio mais recente, do 'kit anti-homofóbico, cairam as cascas da cebola que ostentavam as credenciais do liberal. Emergiu o oportunista da intolerância, abraçado a um savonarola dos 'bons costumes'. Um intercurso explícito entre o obscurantismo e o o vale tudo que constrange até círculos intelectuais mais esclarecidos do tucanato.
Depois de alvejar a iniciativa do MEC, Serra foi desmascarado mais uma vez: em 2009, quando governador, distribuiu material semelhante em muitos aspectos ao professorado estadual de SP.
A semelhança é compreensível: o material nos dois casos foi produzido pela mesma instituição, a ONG Ecos.
Palavras de um dos integrantes da equipe que participou do projeto: "A Ecos sempre trabalhou na gestão do Serra; ele está cuspindo no pote que comeu. O material que fizemos para o MEC tem 80% do material do Estado de São Paulo. É um absurdo se utilizar do preconceito para ganhar voto" (Toni Reis, presidente da ABGLT).
Avulta nesse episódio a caricatural disposição de alguém disposto a dilapidar o próprio currículo. No desespero eleitoral, Serra atacar o programa do próprio Serra.
Compare o tucano de agora, agarrado ao pastor Malafaia, com esse outro, que tomou as seguintes medidas, lembradas por Antonio Lassance, colunista de Carta Maior:
a) em 2005, ele criou a Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual em São Paulo; depois, instituiu a Comissão a Comissão Processante Especial para apuração de atos Discriminatórios a que se refere a Lei n° 10.948/2001, destinada a receber, analisar e mandar punir atos anti-homofóbicos;
b) também em 2005, Serra criou o Conselho Municipal em Atenção à Diversidade Sexual e o Centro de Referência e Combate à Homofobia;
c) em 2006, criou o GRADI – Grupo de Repressão a Delitos de Intolerância a DECRADI – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, para o controle e repressão dos grupos homofóbicos.
Em resumo, quando o interesse era disputar o espaço LGBT com a petista Marta Suplicy, Serra não criou apenas um kit anti-homofobia, mas armou um elogiável rede da tolerância em SP. Agora, dá guinada na direção oposta e salta para os braços dos malafaias, supostamente puxadores do voto evangélico.
O evento tardio desta 2ª feira em torno do 'programa' para a cidade ressente-se desse vício congênito à natureza política de Serra: a simulação, irmã gêmea da falta de escrúpulo.
O que se divulgou foi um adereço de mão de fantasia eleitoral, no qual nem o candidato acredita, como deixou claro no discurso que proferiu no evento.
Passa-se ao largo da oportunidade preciosa de discutir São Paulo para valer, estendendo a seu moradores o direito elementar de escrutinar os problemas da cidade e tomar onsciência dos requisitos políticos para equacioná-los.
Não há rigor técnico algum na rudimentar listagem tardia das propostas mal-ajambradas pelo tucano. O que é feito para não valer pode elidir metas, omitir cronogramas e abstrair custos.
Em resumo, prescindir dos requisitos que lhe dariam veracidade e transparência compatível com a eventual fiscalização pela cidadania.
O simulacro do conjunto foi resumido na descrição de um item por insuspeita fonte: "Em um dos poucos momentos em que dedicou sua fala às próprias propostas, Serra lembrou a promessa de construir 30 AMAs (Assistência Médica Ambulatorial)". (...) "Mas não a ponto de detalhar onde vamos fazer..." (ressalvou o tucano). "Isso seria impossível" (UOL, 16-10).
O modelar descompromisso se repete em outros tiros a esmo, como a promessa de implantar '30 parques' na cidade (onde? como?com que verba?); ou instalar mais cinco mil novos pontos de luz ou ainda a etérea menção uma deficiência escandalosa da gestão de seu apadrinhado, que não dedicou a ela um centímetro adicional de asfalto: 'expandir a rede de corredores de ônibus'. Assim, em quatro palavras, desincumbe-se o tucano da grave distopia do transporte em São Paulo, como se fosse algo tangencial, passível de tratamento genérico e ligeiro. Vai por aí o seu crepuscular 'programa de governo'.
O conjunto exala o peso e a contundência de uma bolinha de papel eleitoral. Mais que isso, reforça uma percepção que se calcifica: Serra é o principal testemunho contra ele mesmo.
A postura professoral ancorada em boutades é quase ofensiva; a soberba incontrolável das sobrancelhas em pinça denuncia a impaciência de quem ouve por obrigação.
Quando tenta transparecer humildade, o tucano exala condescendência; o tom do discurso é sempre o mais revelador: ao tentar ser simpático é notório que está sendo falso.
O anti-sindicalismo udenista de Serra explode ao primeiro conflito social, assim como o recorte antidemocrático irrompe à primeira pergunta embaraçosa de jornalista não embarcado na vassalagem midiática.
O higienismo social que arremata o conjunto sequer é dissimulado --e olha que estamos falando de um dissimulador experimentado.
É difícil demover as consequências eleitorais dessa sedimentação ancorada na percepção intuitiva da população, saturada de dissimulações rotas, convicções esfarrapadas e do recorrente vale tudo das conveniências.
São Paulo é o grande bunker logístico do conservadorismo brasileiro.
A rejeição a um dos principais quadros desse aparato precisa acumular muito vapor na fornalha para romper uma blindagem arrematada com a solda dupla do jornalismo cúmplice.
O maior trunfo de Haddad hoje é esse discernimento em curso na opinião pública.
Trata-se de iluminar cuidadosamente o cerne da questão: Serra é impermeável a qualquer valor ou compromisso que não atenda ao seu exclusivo interesse pessoal. No seu arquivo biográfico, o interesse pela cidade ocupa o lugar da prateleira subalterna. E essa hierarquia se adensa nos episódios caricaturais desta campanha de 2012.
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