As forças da contra-revolução alinham com o Ocidente. O Conselho de Cooperação do Golfo apressou-se a prometer o seu apoio inequívoco. Os Emirados Árabes Unidos estão a enviar vinte e quatro aviões e o Qatar enviará até seis. Nenhum avião tunisino e egípcio está nessa oferta. Por Vijay Prashad, Counterpunch
Mal os os membros do Conselho levantaram as suas placas para indicar os votos, os caças Mirage franceses ligaram os motores para começar os seus voos de bombardeamento. Foto de mashleymorgan
No dia 19 de Março de 2011, o Conselho de Segurança das Nações Unidas votou a Resolução 1973 para estabelecer uma zona de "exclusão aérea" sobre a Líbia. A violência contra civis e pessoal dos meios de comunicação é citada como a razão para a nova resolução (uma anterior, de 1970, esmorece). O Conselho autoriza uma proibição de todos os voos sobre a Líbia (excepto com objectivos humanitários), congela bens selectivos do alto comando líbio e propõe que um Painel de Peritos seja estabelecido para investigar a questão dentro do próximo ano. Mal os os membros do Conselho levantaram as suas placas para indicar os votos, os caças Mirage franceses ligaram os motores para começar os seus voos de bombardeamento e os navios dos Estados Unidos armaram os mísseis-cruzeiro para disparar contra objectivos líbios. Os bombardeamentos foram destinados a desmantelar as defesas aéreas líbias. Foi o prelúdio do estabelecimento de uma zona de "exclusão aérea".
Para criar a zona de “exclusão aérea”, o Conselho permitiu que os estados-membro actuassem “a nível nacional ou através de organizações regionais,” nomeadamente a NATO, para “tomar todas as medidas necessárias para forçar o cumprimento da proibição de voar.” São essas “todas medidas necessárias” que permitem que os estados-membro (os Estados Unidos, a Inglaterra e a França) estendam a zona à vontade e pressionem a partir do cumprimento duma zona de "exclusão aérea" até à retirada de Khadafi, incluindo o alvejar do seu complexo militar em Trípoli. Para Obama, o objectivo da guerra é afastar Khadafi, o que está para além da autoridade da Resolução 1973 da ONU. Os mísseis-cruzeiro dos Estados Unidos atingiram unidades de forças armadas líbias e a casa de Khadafi (aquilo a que os meios de comunicação chamam o seu "complexo").
A falta de contornos da missão desconcerta o General Carter Ham do Comando Africano dos Estados Unidos. Ele reconheceu que muitos dos rebeldes são civis que pegaram em armas. A resolução 1973 não apela a que os estados membros dêem assistência aos rebeldes, apenas a que protejam os civis. Daria uma zona de “exclusão aérea” vantagem aos rebeldes e violaria assim o mandato? “Não fornecemos apoio aéreo próximo às forças da oposição,” observa o General Ham, “protegemos civis.” Contudo, “É uma situação muito problemática. Às vezes são situações destas que se reportam melhor no quartel-general do que na cabina dum avião”. Se as forças de Khadafi atacarem os rebeldes, os aviões e os mísseis-cruzeiro tecnicamente não podem interferir. Em tal caso, o apelo feito pelos rebeldes para apoio aéreo não pode ser correspondido pela Resolução 1973.
Os aviões franceses tomaram a dianteira, possivelmente para ajudar a sustentar o partido anémico do Presidente Sarkozy nas eleições ao nível dos cantões (o que não teve grandes resultados, dado que a extrema-direita e os socialistas conseguiram ganhos). Apesar dos avisos do Secretário de Defesa Robert Gates quanto a um conflito extenso, a máquina de guerra dos Estados Unidos prosseguiu e ultrapassou os bombardeamentos franceses. Há cem anos, aviões italianos inauguraram o bombardeamento aéreo dessas mesmas cidades. O futurista Tommaso Marinetti voou numa sortida, achando que as expedições de bombardeamento eram "higiénicas" e uma boa “educação moral.” O comunicado oficial da força aérea de 6 de Novembro de 1911 considerou que as expedições “tiveram um maravilhoso efeito no moral dos árabes”. O Daily Chronicle publicou no mesmo dia: “Isto não foi guerra. Foi um matadouro. Os não-combatentes, jovens e velhos, foram mortos desapiedadamente, sem remorso e sem vergonha.” Os italianos acobertaram-se atrás do direito internacional. O Instituto de Direito Internacional de Madrid considerou que “a guerra aérea é permitida, mas só com a condição de que não exponha a população pacífica a maiores perigos do que com ataques em terra ou mar.” Mais ou menos a mesma lógica flutuou em torno da reunião de Bruxelas da NATO.
No campo da esquerda, a certeza deixou de ser uma opção. As ameaças de Khadafi contra a rebelião muito mais débil no Leste são difíceis de ignorar. As detenções e os assassinatos no Oeste são igualmente apavorantes. Não há nenhuma alavanca fácil de usar contra o poder de Khadafi. Muitos dos que estariam de outra forma contra a intervenção humanitária não têm agora tanta certeza. Mais ou menos o mesmo dilema deteve liberais e algumas pessoas da esquerda quando George H. W. Bush prometeu destruir o regime de Saddam Hussein (aqueles de nós que estiveram em vigílias pelo massacre de Hallabja lembrar-se-ão do debate). Estas não são discussões fabricadas. São reais. Nenhuma força da esquerda está disponível para defender os rebeldes. Nenhum exército vietnamita, como o que entrou no Camboja em 1978-79 para esmagar os Khmer Vermelhos e salvar o Camboja da política maníaca de Pote Pol. Nenhumas tropas cubanas, como as que vieram em ajuda do MPLA (quem pode esquecer o cerco de Cuito-Cuanavale de 1987-88 e a vitória final do MPLA e dos cubanos contra os sul-africanos, um soco mortal do regime de apartheid). Esses são episódios da intervenção militar quando o equilíbrio de forças favorecia a esquerda. Será a actual zona de intervenção de “exclusão aérea” um tal feito?
Poucos têm qualquer ilusão sobre as acções "da coligação". Mesmo o guru do intervencionismo liberal, Michael Walzer, acredita que isto é “a intervenção errada.” Porque procura o Ocidente bombardear a Líbia e não os estados do Golfo ou a Costa do Marfim, ou o Darfur ou realmente o Congo, é claro de perceber. A resposta a todas as perguntas é a mesmo: petróleo. Para os activistas pela democracia do Bahrein a intervenção autorizada veio da Arábia Saudita, cujo interesse é esmagar a contestação na península e conservar as monarquias que rodeiam o primeiro entre iguais, o reino do Rei Abdullah e dos barões do petróleo. O Iémene está prestes. Fazem-se acordos. Às figuras seniores nas alas militares e políticas que abandonam Ali Abdullah Saleh já foram dadas garantias pelos seus apoiantes poderosos. Enquanto a revolução não for demasiado longe, e enquanto os militares poderem conter qualquer movimento pela democracia radical, tudo será desculpado. O espectro da al-Qaeda trata de Washington, e o do republicanismo radical trata da Arábia Saudita. A Costa do Marfim, o Darfur e o Congo permanecem de fora do reino destes tratamentos.
O Ocidente já tinha obtido a maior parte dos contratos de petróleo líbios (estamos longe dos dias em que Khadafi tinha afastado os irmãos Hunt e agarrado o controle dos campos de petróleo; conduziu contorções da lógica revolucionária para explicar o tapete vermelho colocado às mesmas firmas de petróleo que antes injuriara). Poucas vantagens devem ser ganhas com a expulsão de Khadafi. O que possivelmente corre no ADN dos poderosos é que uma guerra civil demorada na Líbia prejudicaria a sua capacidade de transportar o petróleo que jaz sob o seu solo e que tão perigosamente prejudica “o modo de vida” daqueles que importam. Os eventos tiveram de ser apressados. Se Khadafi tivesse ficado menos confiável, seria altura de se virar para o Conselho Revolucionário e esperar que ele fosse um corretor de petróleo igualmente flexível mas com um melhor historial de direitos humanos.
A secretária de Estado Hillary Clinton e a Embaixadora dos Estados Unidos na ONU Susan Rice não tiveram um tempo fácil na ONU. A África do Sul, a Nigéria, o Brasil e a Índia recusaram-se a avançar. Os chineses e os russos não eram entusiastas. Foi preciso um feroz torcer de braço à Liga Árabe para dar a Obama a ferramenta para pôr a andar Jacob Zuma da África do Sul através dum telefonema apressado. Manjeev Singh Puri da Índia indicou que o seu país não podia apoiar a resolução porque estava “baseada em muito pouca informação clara, inclusive falta de certeza sobre quem ia fazer aplicar a medida... Os esforços políticos devem ser a prioridade na resolução da situação”. Maria Luiza Riberio Viotti do Brasil também objectou, basicamente porque o Brasil “acreditava que a resolução contemplava medidas que iam para além [do] apelo” a uma protecção de civis. Estava preocupada que as acções tomadas pudessem causar “mais dano do que bem a esses mesmos civis que nos comprometemos a proteger” e que nenhuma acção militar por si só “conseguiria pôr um fim ao conflito”. O Brasil, a China, a Alemanha, a Índia e a Federação Russa abstiveram-se. Dez votaram com os Estados Unidos, a França e a Inglaterra. Não houve nenhum voto negativo.
O imprimatur da Liga árabe foi essencial, mas foi também arrevesado. Nawaf Salam do Líbano, por exemplo, disse que a resolução não autorizou a ocupação “duma só polegada” do território líbio. Parece que os membros da Liga acreditaram que uma zona "de exclusão aérea" seria conduzida sem bombardeamento. O Amr Moussa, o chefe da Liga, pareceu confuso. Primeiro disse que o bombardeamento “se diferencia do objectivo de impor uma zona de exclusão aérea” e depois foi empurrado para estar ao lado do Secretário Geral da ONU Ban Ki-moon no Cairo e para se retratar (o carro de Ban foi assaltado quando deixou a sede de Liga Árabe por manifestantes gritando “exclusão aérea, exclusão aérea”). A União Africana também ficou como o tolo no meio da ponte. Pareceu apoiar a Resolução 1973, mas depois hesitou quando a sua comissão ad-hoc com altos poderes foi impedida de ver Khadafi e os rebeldes para negociar um cessar-fogo. O que a Liga Árabe e a União Africana esperavam de “todas as medidas necessárias” é desconcertante, se é que não é a rotina típica, agora bem estabelecida depois do Panamá, Jugoslávia, Afeganistão e Iraque.
Os rebeldes em Benghazi pediram uma zona de "exclusão aérea". A intervenção liberal abriga-se atrás de convites. Os Estados Unidos invadiram as Filipinas só depois de serem convidados por Emilio Aguinaldo a participar na luta contra os espanhóis. Quando os espanhóis fugiram, os Estados Unidos decidiram assumir o poder. Esta espécie de gramática imperial move-se desde 1898 até ao século 21 com à-vontade. Os rebeldes em Benghazi também pediram ajuda. Mas será esta a única ajuda possível?
Os rebeldes estiveram sob o ataque da capacidade de fogo superior de Khadafi. Foi claro, no fim da de semana passada, que um empate forçado estava no horizonte e que a movimentação de Khadafi ao longo da costa não ia muito longe. Membros mais ponderados do seu governo já tinham deixado bem claro que não iriam permitir um assalto completo em Benghazi. Tais garantias não valem muito. Khadafi está enfraquecido nos seus fundamentos e a seu tempo teria tido de procurar uma saída para si e para a família. Era inevitável. A pergunta era quanto tempo isso demoraria e quanto sofrimento forçaria como preço pela partida. Os amigos de Khadafi na cena internacional, entre os quais há que acrescentar tanto Chávez como Berlusconi, teriam tido de desempenhar um papel a convencê-lo de que tudo terminara (David Held e o Lord Meghnad Desai poderiam ter desempenhado um papel com Saif al-Islam).
Certamente a Liga Árabe e a União Africana não têm a capacidade militar ou talvez a inclinação para abrir uma frente em nome dos rebeldes, mas podiam certamente ter enviado forças de manutenção de paz para evitar um assalto às cidades orientais. Além disso, os bens congelados podiam ter sido entregues ao Conselho Revolucionário, como forma de se armarem com o mesmo arsenal que os exércitos de Khadafi. Poderiam ter sido formas de ganhar tempo para que os rebeldes orientais encontrassem aliados nas cidades ocidentais, em particular nas áreas impacientes da classe trabalhadora de Trípoli (como Tajoura e Gurgi).
Tais opções já não são centrais, ou não estão sequer em cima da mesa. O domínio de Khadafi pode cair dentro de uma semana ou de um mês. Neste intervalo de tempo é um animal engaiolado, e os seus seguidores não se dissolverão facilmente. A curto prazo pode conduzir algum tipo de ataque espectacular com um navio-tanque no Mediterrâneo, ou, como ele ele mesmo avisou, dentro da Europa. Isto é precisamente o tipo de pretexto que os belicistas procuram. O Golfo de Sidra fará a vez do Golfo de Tonkin. Barcos de guerra atracarão em Benghazi e as tropas de terra deslizarão ao longo do caminho que foi uma vez o cemitério de Field Marshal Montgomery e de Rommel (pedaços das suas pistas e tanques ainda atulham a estrada fora de Tobruk). Um tal assalto, que poderia ser inevitável, reanimará o fracasso no Iraque que durou de 2003 a 2007, com os seguidores agora na clandestinidade numa revolta brutal contra as tropas estrangeiras e os povos do Leste, uma defesa do seu reino e um conflito sectário ao mesmo tempo. Fosse este o cenário, então, como disse Michael Walzer, “ele iria estender, não parar, o derramamento de sangue.”
As forças da contra-revolução alinham com o Ocidente. O Conselho de Cooperação do Golfo apressou-se a prometer o seu apoio inequívoco. Os Emirados Árabes Unidos estão a enviar vinte e quatro aviões e o Qatar enviará até seis. Ajudarão também a financiar o custo de fazer cumprir uma zona de "exclusão aérea", de $1-2 milhares de milhão/mês. As tropas da Arábia Saudita permanecem no Bahrein. A sua força aérea está toda equipada e também ela pode voar ao lado dos franceses em céus líbios. Nenhum avião tunisino e egípcio está nessa oferta. É um sinal revelador que só os regimes contra-revolucionários estejam excitados com a perspectiva desta batalha. Sabem que é precisamente a melhor oportunidade de parar a maré da Revolta Árabe de 2011.
Vijay Prashad é responsável pela Cátedra George and Martha Kellner de História da Ásia do Sul e Director dos International Studies no Trinity College, Hartford, CT. O seu livro mais recente, The Darker Nations: A People's History of the Third World, ganhou o prémio literário Muzaffar Ahmad de 2009. As edições sueca e francesa acabam de sair. Pode ser contactado em:
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