Marcha sobre Roma, 1922
O acirramento da luta de classes às vésperas da ascensão do fascismo na Itália (Parte II)*
Lênin
encarava os processos revolucionários como “aceleração do tempo
histórico”, mudanças que deveriam levar décadas, ou até
séculos, efetivadas num curto espaço de tempo, pelos agentes
revolucionários. Na Itália, o “biênio vermelho” se
caracterizou por uma conjuntura desse tipo, tendo no operariado a
vanguarda responsável pela luta por profundas mudanças em sua
sociedade. O biênio de lutas (1919-1920) foi marcado por uma intensa
agitação por parte da classe trabalhadora italiana, que promoveu
uma série de greves, culminando com as famosas greves com ocupação
de fábrica e controle da produção. O proletariado esteve na
ofensiva, mesmo no conservador meio rural os trabalhadores começaram
a se mobilizar para lutar contra o latifúndio. O centro da Revolução
foi Turim, base da corrente ordinovista
do PSI.
A galvanizar a situação toda uma vaga
internacional revolucionária, tendo a frente a União Soviética,
seguida do exemplo da República dos Conselhos da Hungria, dos
espartaquistas alemães, da Viena Vermelha. Não obstante, a
social-democracia italiana, seguindo as diretrizes da II
Internacional, não encampou os ímpetos revolucionários da classe
operária. Isolado, o movimento de ocupação de fábricas ficou
restrito a Turim e algumas fábricas de Milão, não se expandindo
para o restante do país. O PSI foi responsável pelo cordão de
isolamento que restringiu o levante proletário a algumas regiões da
península. Anos mais tarde, já na prisão, Gramsci fez uma
autocrítica sobre o “biênio vermelho”, afirmando as limitações
da classe operária em relação a Itália como um todo, concluindo
que um movimento revolucionário efetivo teria que se expandir ao
proletariado rural, amparado por um partido forte, com um programa
definido e consciente da realidade italiana.
O
fato é que a esquerda italiana estava dividida entre várias
correntes, com programas distintos e inconciliáveis. Tal panorama
levou a um inevitável racha em janeiro de 1921, a esquerda do PSI,
composta pelo grupo L'Ordine Nuovo
e pela fração abstencionista de Amadeo Bórdiga, também chamado de
grupo Il Soviet,
periódico da corrente, formou o PCI (Partido Comunista Italiano),
referendando as 21 condições da III Internacional. Contudo, o
divisionismo esteve presente na nova agremiação desde seus
primórdios, representada pelo abstencionismo de Bórdiga, com
tonalidades de extrema-esquerda, e os ordinovistas, com uma leitura
mais acurada acerca de sua conjuntura. O PSI permaneceu fiel as
diretrizes da social-democracia, com seu gradualismo e disposição
para o compromisso junto a burguesia.
Enquanto a esquerda se esfacelava, a
direita unia forças. A essa altura, fiel ao seu oportunismo,
Mussolini já se plasmara como líder de extrema-direita, o periódico
Popolo d'Itália, que em princípio vira com bons olhos o
movimento de ocupações de fábrica, passara a atacar ferozmente
tais iniciativas. No segundo semestre de 1920, um fenômeno novo
interveio para reforçar a reação, o fascismo rural, ainda mais
selvagem que o urbano. Também é ponto comum entre os pesquisadores
que foi de fundamental importância para o avanço do fascismo o
apoio das classes produtoras, Antonio Gramsci, o mais arguto
observador do período, narrou da seguinte forma o pacto que foi
selado entre a burguesia italiana e o fascismo, o relato é
esclarecedor:
Em
março de 1920, as classes proprietárias começaram a organizar a
contra-ofensiva. Em 7 deste mês, reuniu-se em Milão a primeira
Conferência Nacional dos Industriais Italianos. No decorrer dessa
reunião, foi elaborado um plano preciso e completo para a ação
capitalista unificada, no qual tudo estava previsto, desde a
organização disciplinada e metódica da classe dos fabricantes e
dos comerciantes até o estudo de todos os instrumentos de luta
contra os sindicatos operários, até a reabilitação política de
Giovanni Giolliti. Nos primeiros dias de abril, a organização
obtinha já o seu primeiro sucesso político: o Partido Socialista
declarava anarquista e irresponsável a grande greve do Piemonte, que
eclodira para defender os comitês de fábrica e para conquistar o
controle operário sobre a indústria. O PSI ameaçava dissolver a
seção de Turim, que dirigira esta greve. Em 15 de junho, Giolitti
formava seu ministério de compromisso com o Estado-Maior,
representado por Bonomi, ministro da Guerra. Um trabalho febril de
organização contra-revolucionária teve início então, como reação
à ameaça de ocupação de fábricas (…) . Em julho, o Ministro da
Guerra, com Bonomi a frente, começou a desmobilização de cerca de
60.000 oficiais nas seguintes condições: os oficiais foram
desmobilizados, mas mantiveram quatro quintos do seu soldo; a maior
parte deles foi enviada para os centros políticos mais importantes,
com a obrigação de aderir aos fasci di combatimento;
até este momento, os fasci
não passavam de uma pequena organização que reunia socialistas,
anarquistas, sindicalistas e republicanos favoráveis à participação
da Itália na guerra ao lado da Entente.
O governo Giolitti fez o maior esforço para aproximar a Confederação
da Indústria e as associações rurais, particularmente as da Itália
central e setentrional. Foi então que apareceram os primeiros
esquadrões armados do fascismo e que se produziram os primeiros
episódios terroristas (…)1.
O
crescimento irresistível do fascismo só foi possível com o
patrocínio das elites italianas. A reunião da Confindústria,
citada acima por Gramsci, assinalou o medo das classes produtoras
frente a ofensiva dos operários. A vaga revolucionária
internacional não inquietava apenas a esquerda radical, em sentido
inverso, insidia também sobre a burguesia, o exemplo bolchevique
estava por demais próximo, por isso a iniciativa de reabilitar
Giolitti, há quase uma década fora da política, porém uma
personalidade com transito junto ao movimento operário local.
Contudo, não bastava contar com a conivência do PSI, o medo da
inépcia de um novo Kerenski era real, também não havia uma dupla
Noske-Scheidemann2
para cooptar. Era necessário conter o comunismo em sua base, ou
seja, nos sindicatos, nas cooperativas, nas ruas. Quem podia executar
essa tarefa, visto que a repressão estatal começava se mostrar
insuficiente, com carabineiros se recusando a atirar nos
trabalhadores (de novo o exemplo russo, com seus soviets
de soldados), eram os fasci de
combatimento.
Com apoio financeiro, incentivo a novos aderentes, conivência quase
total do aparato jurídico e policial, o fascismo obteve um
crescimento notável em poucos meses. Segundo dados do Ministério do
Interior do período, em março de 1921, os seguidores de Mussolini
formavam um grupo de 80.476 homens, já em outubro do mesmo ano, seus
efetivos chegaram a 217.072 homens (lembrando que o acordo junto a
elite empresarial foi firmado em abril)3.
A
metodologia de ação dos fasci foi
chamada de squadrismo, que
consistia em invadir sindicatos e associações laborais, em bandos
compostos por centenas de homens armados com porretes, com direito a
espancamentos e assassinatos. Após a associação ao Estado, tais
missões também passaram a contar com armas de fogo e granadas.
Cidades inteiras foram tomadas de norte a sul do país, sindicatos
definitivamente ocupados, prefeituras e demais departamentos públicos
invadidos e incendiados, nas cidades governadas pela esquerda.
Manifestações e protestos dos trabalhadores eram dissolvidos a
bala, em poucos meses milhares de pessoas foram assassinadas,
torturadas, mutiladas. Mais uma vez recorremos a Antonio Gramsci como
testemunho acerca de todo esse estado de barbárie:
A
posição política do fascismo é determinada pelas seguintes
circunstâncias elementares:
- Os fascistas, em seis meses de atividade militante, tornaram-se responsáveis por uma pesadíssima bagagem de atos criminosos, que só permanecerão impunes enquanto a organização fascista for forte e temida.
- Os fascistas só puderam realizar suas atividades porque dezenas de milhares de funcionários do Estado, em particular os organismos de segurança pública ( delegados de polícia, guardas-régias, carabineiros) e da magistratura tornaram-se seus cúmplices morais e materiais. (...)
- Os fascistas dispõem, disseminados por todo o território nacional, de depósitos de armas e munições em quantidade suficiente para formar um exército de pelo menos meio milhão de homens.
- Os fascistas organizam um sistema hierárquico de tipo militar, que encontra seu coroamento natural e orgânico no Estado-Maior4.
A
panorama se tornou tão favorável a Mussolini, que o mesmo achou que
havia chegado a hora de constituir o seu próprio partido, o PNF
(Partido Nacional Fascista), em novembro de 1921. Em meados de 1921 a
classe operária intentou um último ato de resistência, uma greve
geral em resposta a violência da extrema-direita. Mas tal iniciativa
redundou em fracasso, a essa altura o horror squadrista
já era demasiado presente, a se somar ao esfacelamento da esquerda
mergulhada em cisões internas. Assim sendo, a tomada do poder era
só questão de tempo. O plano de Giolitti de se valer da truculência
fascista para restaurar a “ordem” em seu país, e posteriormente
se livrar dos mesmos, de forma maquiavélica, deu com os burros
n'água. A maquina fascista se tornou um Leviatã que engoliu o
próprio Estado italiano. Em outubro de 1922, uma horda de milhares
de fascistas tomou conta das ruas de Roma, ninguém mais podia se
antepor entre eles e o poder. A pressão das bases era fortíssima,
os lugares-tenentes de Mussolini,
Italo
Balbo,
Cesare
Maria De Vecchi,
Emilio
de Bono e Michele Bianchi,
homens curtidos na violência, insuflavam seus homens, apenas o poder
de Estado lhe interessava. Nem Mussolini tinha controle sobre esses
militantes, fazendo jus a seu oportunismo, permaneceu em Milão
durante a ocupação de Roma, só se dirigindo a capital após
chamado do próprio rei, Vittorio Emanuelle III. Em poucos dias se
tornou presidente do Conselho de Ministros da Itália.
*****
Embora o
fascismo, desde os seus primórdios, se apresentasse como um
movimento de natureza hegemônica, liderado por um sociopata, as
forças que poderiam contê-lo se deram conta deste fator tarde
demais. Mesmo entre os comunistas não havia clareza sobre a real
natureza de tal movimento. As derrotas na Alemanha, na Hungria, e
agora na Itália, levaram a III Internacional a rever uma série de
diretrizes em relação ao processo revolucionário internacional. O
terceiro Congresso da IC possuiu contornos bem menos otimistas em
comparação aos dois primeiros, no segundo semestre de 1920 a
revolução não estava mais na ordem do dia, os comunistas deveriam
agora passar a defensiva. Por isso, foi acertada a tática de frente
ampla, ou seja, união de todas
as forças de esquerda afim de barrar o avanço da reação. Contudo,
líderes como Amadeo Bórdiga se recusavam a encarar o panorama
dentro deste prisma, amparado por discursos radicais. Mesmo após a
tomada de poder pelo PNF, o líder abstencionista seguia minimizando
o potencial dos fascista, afirmando que o governo de Mussolini não
passava de “uma mudança do pessoal governamental da burguesia”.
Umberto Terracini, liderança do PCI, definia o governo dos fasci
como uma “crise ministerial passageira”. E no entanto, o comando
de Mussolini durou mais de vinte anos.
Antonio Gramsci, já em 1920,
chamava a atenção para o potencial destrutivo do fascismo,
atentando para o seu caráter classista e internacional, sem, no
entanto, desvinculá-lo do Estado tradicional.
(…)
O fenômeno do “fascismo” não é apenas italiano, assim como
não é apenas italiana a formação do Partido Comunista. O
“fascismo” é a fase preparatória da restauração do Estado, ou
seja, de uma intensificação da reação capitalista, de um
aguçamento da luta capitalista contra as exigências vitais da
classe proletária. O fascismo é a ilegalidade da violência
capitalista, enquanto a restauração do Estado é a legalização
desta violência: é uma conhecida lei histórica a de que o costume
precede a lei5.
Porém, a “ilegalidade da
violência capitalista”, citada acima pelo comunista sardo, se
consubstanciou no Estado burguês fascista.
Segundo
Nicos Poulantzas, os teóricos da III Internacional em conjunto não
foram capazes de analisar com clareza o fenômeno do fascismo,
associando-o ao atraso econômico, sendo por isso impossível o
advento de tal regime em países de capitalismo avançado –
Alemanha. O economicismo, tão marcante na II IC, não foi superado
pela Terceira Internacional, relatórios da organização antecipavam
que “o fascismo não podia durar, no sentido próprio do termo:
nesta concepção evolucionista da “crise econômica” e da
iminência abstrata da revolução, ele não poderia representar uma
viragem ou uma etapa da luta de classes”. E mais, “o fascismo,
simples episódio passageiro no processo mecânico da crise econômica
– evolução–catástrofe–revolução, desmoronar-se-ia de algum
modo por si mesmo.
Assim sendo, o breve fascismo se converteu num “momento positivo do
lado mau da história”6,
antessala da Revolução.
Uma união de
todas as forças de esquerda, somadas ao liberalismo progressista e
setores sadios do clero, poderia ter feito frente ao fascismo, ao
menos era assim que tanto Gramsci e as diretrizes do III Congresso da
IC ponderavam. Contudo, tal tática se demonstrou inaplicável tanto
na Itália quanto nos demais países da Europa. Na península, o
principal opositor a essa diretriz foi Amadeo Bórdiga, radicalmente
contrário a qualquer acerto com os social-democratas. As feridas do
biênio vermelho ainda se encontravam abertas. Essa animosidade
frente a social-democracia levará a resolução do social-fascismo,
ratificada no sexto Congresso da IC, em 1928, agora sob a batuta de
Stalim. O resultado mais marcante dessa visão será a ascensão do
nazismo na Alemanha. A essa altura, Gramsci se encontrava encarcerado
na Itália, e Mussolini caminhava em direção a constituição de um
Estado totalitário, sem adversários que pudessem ameaçar seus
projetos.
A guisa de
conclusão, consideramos o fascismo uma medida de emergência do
Estado burguês ao se sentir ameaçado. De fato, o fascismo italiano
representou algo de novo, uma ditadura burguesa de novo
tipo. Embora Mussolini, fazendo
jus a sua velhacaria, tenha se afastado do fascismo puro – permeado
por um anticapitalismo romântico e disposto a refundar o Estado –
e se imiscuído junto as forças da velha ordem, seu regime de fato
foi algo jamais visto na história do Estado Nacional moderno. O
fascismo foi o tampão perante a vaga aberta pela União Soviética,
pôs fim a maior onda revolucionária da História, nunca o
capitalismo se encontrou tão assediado quanto nessa fase. De tão
eficiente, o fascismo foi expandido para o mundo inteiro, sua
elasticidade teórica permite que tal sistema seja adaptado a
qualquer realidade nacional. Produto direto da agudização das lutas
de classe, o advento do fascismo não pode ser descolado de sua
conjuntura macroeconômica, crise, luta de classe e Revolução
caminham juntas, mas nem sempre essa gradação se completa, entre
esses conceitos se encontra o fascismo, remédio amargo da burguesia.
Entretanto, essa mesma burguesia jamais pensará duas vezes para
recorrer a extrema-direita quando se encontrar sob ameaça, real ou
superestimada, vão-se os anéis, ficam os dedos. O fascismo também
serve de carta na manga para as classes dirigentes, nos eventos de
1968, frente a uma nova ofensiva da esquerda, seu fantasma foi
evocado. Em países como Alemanha e Itália, sobretudo nesta, agentes
do velho squadrismo
foram reabilitados para mais uma vez direcionar seu potencial de
violência aos comunistas. O fascismo é o espectro mal a rondar a
civilização, não apenas europeia, mas mundial.
1Com respeito a “ordem” que o Ministro da Guerra nomeado por Giollitti, Ivañoe Bonomi, teria dado aos oficiais desmobilizados para aderirem aos fasci, Robert Paris comenta uma circular do Estado-Maior maior italiano que “convidava os oficiais desmobilizados a aderir aos fasci”. Para relato de Gramsci, GRAMSCI, Antonio. Op. Cit. p.125; para afirmações de Robert Paris; PARIS, Robert. As Origens do Fascismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. p.78
2Líderes social-democratas alemães, responsáveis pela repressão feroz ao levante espartaquista em 1919
3 GENTILE, Emílio; FELICE, Renzo de p. Op. Cit. p. 25
4GRAMSCI, Antonio. Op. Cit. p. 65-66
5GRAMSCI Antonio. Escritos Políticos, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p.429
Bibliografia
ESCORSIM, L.
Mariátegui: Vida e Obra. São
Paulo: Editora Expressão Popular, 2006.
GENTILE, E.; FELICE,
R. A Itália da
Mussolini e a Origem do Fascismo.
São Paulo: Ícone Editora, 1988.
GRAMSCI, A.
Escritos Políticos,
vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004
_________
Escritos Políticos,
vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004
MARX, K. O
18 Brumário de Luís Bonaparte.
São
Paulo: Centauro, 2008.
PARIS, R. As
Origens do Fascismo.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.
POULANTZAS, N.
Fascismo e Ditadura.
São Paulo: Martins Fontes. 1978
SANTOS de OLIVEIRA,
S. L. “O Grupo (de Esquerda) de Osasco. Movimento estudantil,
sindicato e guerrilha (1966-1971)”. Dissertação de mestrado:
FFLCH-USP, 2011.
SECCO, L. Gramsci
e a Revolução. São
Paulo: Alameda, 2006.
TASCA, A. El
Nacimiento del Fascismo.
Barcelona: Ediciones Ariel, 1967.
TOGLIATTI, P. Lições
sobre o fascismo. São
Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.
* Artigo escrito por Sérgio Luiz Santos de Oliveira, doutorando em História
Nenhum comentário:
Postar um comentário