domingo, 9 de setembro de 2012

O acirramento da luta de classes às vésperas da ascensão do fascismo na Itália (Parte I)



Em tempos de ascensão da direita, é sempre bom ver até aonde a burguesia pode chegar para defender seus interesses excludentes

O acirramento da luta de classes às vésperas da ascensão do fascismo na Itália (Parte I) *

      Palmiro Togliatti, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, ao lado de Amadeo Bórdiga e Antonio Gramsci, em um curso ministrado em Moscou, no ano de 1935, para exilados italianos, definiu da seguinte forma o fascismo, amparado pelas teses do XIII Pleno da Internacional Comunista: “O fascismo é uma ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas, mais imperialistas do capital financeiro”1. A altura do curso ministrado por Togliatti, o regime fascista já completara mais de uma década de existência, o movimento operário italiano se encontrava desmantelado, tendo muitos de seus membros cooptados pelo regime, o partido comunista se encontrava na ilegalidade, com suas lideranças no exílio, encarceradas (tendo em Gramsci seu principal exemplo, preso há quase dez anos) ou na mais profunda clandestinidade. Em tal panorama, a democracia pertencia ao território da memória, a imprensa se encontrava severamente sob censura, e os últimos traços do sistema liberal estavam em vias de desaparecer, dentro de um sistema que buscava cada vez mais a centralização, em direção àquilo que alguns autores chamaram de totalitarismo.
E mais, poucos anos antes, a Alemanha, maior potencia industrial de Europa, também aderira a um regime de extrema-direita, de contornos ainda mais radicais que o Italiano. Em situação semelhante se encontrava a Hungria, Portugal; na Espanha, grupos reacionários católicos já se articulavam, rumo a uma tomada de poder que não tardaria a chegar. A extrema-direita ganhava força no mundo todo, a democracia parecia ter se tornado um sistema em vias de desaparecer, o liberalismo desacreditado, e a expansão socialista, exceto em alguns pontos isolados, parecia ter sido definitivamente contida. Toda essa vaga conservadora e reacionária teve início, não há dúvida, na Itália, a partir dos finais do segundo decênio do século XX.
Prosseguindo com sua exposição, Palmiro Togliatti apresentou outra característica fundamental do fascismo: “O fascismo não significa apenas a luta contra a democracia burguesa, não podemos empregar essa expressão apenas quando estamos em presença dessa luta. Devemos empregá-la apenas quando a luta contra a classe operária se desenvolve sobre uma nova base de massa de caráter pequeno-burguês (…)”. Seguindo sua explanação, o dirigente comunista expões os caracteres tipicamente italianos do fenômeno em análise:

Não compreendemos que no fundo de tudo isso havia um fenômeno social italiano, não vimos as profundas causas sociais que o determinavam. Não compreendemos que os ex-combatentes, os desqualificados, não eram indivíduos isolados, mas uma massa, e que representavam um fenômeno que possuía aspectos de classe. Não compreendemos que não se podia simplesmente mandá-los para o diabo2.

Foi justamente essa massa de “desqualificados” que engrossou as milícias fascistas, quando os grupos que tinham condições de se opor a tais forças se deram conta do crescimento desse movimento, não havia mais tempo para reagir. Para se compreender o advento, expansão e posterior conquista do poder por Mussolini e seus sequazes, é necessário observar com atenção o panorama político-social da Itália no pós-guerra. Este trabalho tem por objetivo analisar tal conjuntura, e fornecer pistas para um melhor entendimento sobre o tema, sem se propor a avançar demasiadamente no assunto, visto que se trata de uma questão ainda em aberto, foco contínuo de debate entre historiadores e demais analistas do período e da temática.


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Dos grandes países da Europa Ocidental a adentrarem ao restrito círculo das Nações imperialistas, a Itália foi o último, não obstante, em princípios dos anos 1920, esse país era a sexta economia do continente. Não há como deixar de relacionar o atraso italiano a sua unificação tardia, completada em 1870. Acerca do tema, vejamos o raciocínio de Nicos Poulantzas, que tece comparações entre o desenvolvimento industrial italiano e alemão.
Na Itália, o processo de industrialização foi particularmente tardio, só começando de forma decisiva por volta de 1880. O feudalismo, marcado pela dominância do setor agrícola, manifestou, no contexto da dispersão territorial e política da Itália (dispersão perpetuada pelas sucessivas ocupações estrangeiras) uma persistência notável. No entanto, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Itália já entrara no estágio imperialista, ainda que de forma muito particular. Dada a importância (que remonta ao Renascimento) do capital comercial e bancário e o atraso da acumulação primitiva na agricultura, o processo de industrialização caracterizou-se, desde o início, por uma tendencia rápida a fusão do capital bancário e do capital industrial em capital financeiro e por um ritmo muito elevado de concentração de capital. O capital industrial monopolista não “precedeu” a constituição do capital financeiro, foi antes o seu corolário3.

O processo descrito acima ajudou a formar uma poderosa elite industrial, detentora do poder econômico em sua Nação, entretanto, com relação ao poder político, a questão era mais complexa. A unificação italiana se deu através de um arranjo político articulado entre a burguesia do norte industrial e os latifundiários do sul agrário. O controle político e administração do novo país ficou nas mãos da burguesia, enquanto os privilégios da elite aristocrática do sul permaneceram praticamente intactos. Presente situação ajudou a criar um fosso econômico-social-cultural que até os dias de hoje marca a Nação italiana. A manutenção do status dos terratenentes meridionais impediu a realização de uma reforma agrária, atuando, aliás, em sentido contrário, reforçando a concentração fundiária e precarizando cada vez mais a situação do campesinato local, fator a agudizar os conflitos de classe.
Este problema, secular na península, foi chamado por Antonio Gramsci de “Questão Meridional”, acerca deste processo, vejamos o que expõe o líder comunista e arguto analista da história de seu país: “A democracia italiana, tal como se criou desde 1870, carece de uma sólida estrutura de classes, que resulta do fato de que não existe predominância de nenhuma das duas classes proprietárias, os capitalistas e os latifundiários. A luta entre estas duas classes representou, na história dos outros países, o terreno para a organização do Estado moderno, liberal e parlamentar”4. Ainda sobre a instabilidade da burguesia italiana, prossegue Gramsci: “A burguesia italiana conseguiu organizar seu estado menos por sua própria força intrínseca do que pelo fato de ter sido favorecida em sua vitória sobre as classes feudais e semifeudais por toda uma série de condições de ordem internacional ( a política de Napoleão III em 1852-1860, a guerra austro-prussiana de 1886, a derrota da França em Sedam e o desenvolvimento do Império Alemão que se seguiu a essa derrota)"5.
Uma série de fatores externos possibilitou a unificação italiana, da mesma forma que a industrialização do país foi financiada por capitais estrangeiros, sobretudo o alemão. Tal situação colocava e elite dirigente local em posição delicada, tendo que fazer concessões a uma poderosa classe – os latifundiários do sul – cujos interesses nem sempre se coadunavam aos seus. A edificação de uma monarquia constitucional parlamentarista, de verniz democrático, ajudou a sustentar o precário equilíbrio do Estado burguês liberal. Entre o final do século XIX e início do XX, o condutor do projeto de Nação moderna na Itália foi Giovanni Giolitti, representante das classes capitalistas avançadas. Ciente das limitações de sua camada social, Giolitti buscou costurar uma articulação junto a classes operárias, de modo a fazer frente a aristocracia rural. Uma articulação entre capital e trabalho era algo que podia manter a estabilidade do regime, isto posto, o Primeiro Ministro se aproximou do movimento operário e dos trabalhadores assalariados do campo, incentivou a formação de sindicatos e confederações laborais, dialogando com o PSI (Partido Socialista Italiano), e oferecendo benefícios aos trabalhadores. Esta política ajudou a fortalecer o operariado local e reforçou o poder sindical. Buscando colocar o reino no seleto clube das Nações imperialistas, Giolliti iniciou uma série de campanhas militares visando a ocupação de territórios no norte da África. Contudo, a eclosão da Grande Guerra interrompeu o desenvolvimento estável do país.

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Não é nosso objetivo aqui discutir a posição e os implicamentos da participação italiana na I Guerra Mundial, o que cabe mencionar é mudança de posição do reino, que em princípio acertara sua participação no conflito ao lado da Alemanha, mas que já em 1915 se aliara a Entente, através do Pacto de Londres. Promessas de auxilio em sua empreitada imperialista e de novos territórios confiscados as potencias a se derrotar marcaram a mudança de posição da Itália.
Ao contrário do observado em Nações como a França e a Alemanha, a classe trabalhadora italiana não se empolgou com a guerra, os ímpetos nacionalistas ficaram restritos a círculos militares arditi (audaz), estudantes de direita e demais grupos reacionários. O PSI, também em sentido contrário a seus vizinhos continentais, não apoiou a participação de seu país no conflito mundial. Das lideranças de renome do partido, destacou-se uma a defender a movimentação bélica, Benito Mussolini, diretor do Avanti!, principal veículo de comunicação da sigla. Por meio do periódico socialista, Benito Mussolini defendeu a participação de seu povo na guerra, sendo por isso expulso do partido ainda em 1914.
O conflito que prometia ser breve, ganhou proporções que transbordaram as expectativas dos atores envolvidos, consubstanciando-se no maior morticínio da humanidade até então, destruindo impérios seculares, redefinindo o mapa geopolítico europeu, lançando quase todos países envolvidos na refrega em crises econômico-político-sociais agudas. Dos mais atingidos, a Rússia, ou os revolucionários russos, viram abertas as searas rumo a uma mudança qualitativa de regime, liderados pela maestria política de Lênin. A Alemanha esteve as portas da Revolução, Hungria deu um passo adiante, sendo rapidamente contida pela reação. Nicos Poulantzas, referindo-se a Alemanha e a Itália, afirma que a crise nessas regiões era de natureza profunda e antecedia a Guerra, para este autor tal período foi marcado pela transição em direção ao “capitalismo monopolista”. Esta transição desorganizou ambas as sociedades, em se tratando de Nações de estruturação recente, em processo de desenvolvimento acelerado. A mesma conjuntura marca a transição em direção a uma sociedade moderna, rompendo com hábitos e estilos de vida remanescentes da sociedade medieval. No caso que nos toca, o arranjo classista tão bem orquestrado Giolitti começou apresentar seus limites.

A situação agrava-se mesmo, após o fim da guerra, devido as vantagens políticas bastante substanciais conquistadas pelas classes populares num momento em que a crescente intervenção do Estado a favor da burguesia italiana se torna para ela, também aqui, uma questão de vida ou de morte.
A Itália, apresenta-se assim, no final da guerra, simultaneamente como um país economicamente “em atraso”, em relação aos outros elos da cadeia imperialista, e de certo modo, “em avanço” em relação a si própria6.

A tradicional sociedade italiana começou entrar em colapso nessa fase, o ritmo do crescimento econômico, o acirramento dos conflitos de classe, mais a grave crise econômica do pós-guerra, punham em xeque antigas concepções de mundo. Aqui encontramos algo de novo, a antiga sociedade teve como defensores apenas setores conservadores ligados ao clero, a monarquia e ao feudalismo moribundo. As demais forças a se digladiar nesse período, dentro de todo um espectro, tanto a esquerda quanto a direita, tinham os olhos voltados para frente, para o avanço, para o futuro, para a construção de uma nova sociedade. Vejamos agora as principais tendencias envolvidas na disputa pelo poder na Itália no dopoguerra.
Vimos acima que o principal representante da esquerda italiana nas duas primeiras décadas do século XX foi o PSI, partido alinhado a II Internacional. A grande instituição representante do internacionalismo marxista, nessa conjuntura, encontrava-se em descrédito (ao menos entre os setores mais radicais do socialismo internacional) devido ao seu apoio a Grande Guerra. Vimos também que o PSI não apoiou o conflito, porém, tal posição não foi acompanhada pelas demais seções europeias, tendo como caso mais emblemático o apoio a aventura imperialista por parte da Alemanha, centro da Social Democracia continental. Tal viragem a direita não foi aceita por todos os membros da II Internacional, e já em 1915 se reuniu a Conferencia de Zimmerwald, congregando as correntes contrarias as diretrizes superiores de seu movimento. Para um melhor entendimento dos preceitos da II Internacional, é válido o argumento de Leila Escorsim, que aponta o marxismo dessa organização como

(...) caracterizado basicamente pela invasão positivista-naturalista que acabara por lhe determinar seus traços elementares: evolucionismo, determinismo e mecanicismo, derivando ora no reducionismo economicista ou sociologista, ora no fatalismo de uma pretensa “marcha inexorável da História rumo ao socialismo” fundado na noção catastrófica de uma “crise final” inevitável do capitalismo – e não havia qualquer colisão entre reducionismo e fatalismo. O marxismo da Segunda Internacional era, sobretudo, uma concepção doutrinária e sistemática da História e da sua dinâmica, assentada num objetivismo grosseiro: o capitalismo estaria inevitavelmente condenado porque o movimento das forças produtivas terminaria, por efeito de leis naturais, chocando-se e rompendo com as relações sociais de produção, com o que o papel do sujeito revolucionário (o proletariado) terminava por consistir numa paciente e organizada expectativa para, na oportunidade da implosão da ordem burguesa, assumir o comando da vida político-econômica. Daí a tarefa da organização revolucionária dirigente da classe operária, o partido: preparar os trabalhadores para compreender o amadurecimento da crise e para esperar pelo seu desfecho.7

Este paradigma foi chamado pelos militantes sintonizados ao grupo que posteriormente formaria a Terceira Internacional (Lênin, Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht) de reformismo, porque os trabalhadores, de acordo com os preceitos social-democratas, deveriam se mobilizar apenas por reformas que melhorassem suas condições de vida, e confiar sempre em lideranças que apontassem o melhor caminho rumo ao desenvolvimento das forças produtivas, em direção a uma situação propícia ao socialismo.
Na Itália, o grande expoente da ala supracitada era Filippo Turatti, principal liderança do PSI, que dividia sua influência com Giacinto Menocci Serrati, guia da facção maximalista, defensora do programa máximo da social-democracia. A notícia da Revolução bolchevique na Rússia aguçou os ímpetos daqueles setores descontentes com as proposições de Karl Kautsky e Eduard Bernstein, próceres da II Internacional. A queda do czar impressionou sobretudo um jovem jornalista, que costumava escrever textos brilhantes no jornal socialista Avanti!, chamado Antonio Gramsci. Ao jovem sardo se juntará outros simpatizantes de Lênin, como Angelo Tasca, Alberto Terracini e Palmiro Togliatti, tendencia que se reunirá em torno do jornal L'Ordine Nuovo (A Nova Ordem). Também a esquerda se movimentava o grupo abstencionista (contrário as participações em eleições) de Amadeo Bórdiga.
Apesar de não ter se convertido na máquina que foi o SPD (Partido Social Democrata Alemão), o PSI se constitui como umas das principais forças políticas de seu país. Em princípios de 1920, a sigla tinha em torno de 300 mil militantes, 2 milhões de filiados a CGL (Confederação Geral del Lavoro), braço sindical do partido, e 150 deputados no parlamento. “Nas eleições administrativas de 31 de outubro a 7 de novembro de 1920, o PSI conquistou a maioria em 2.162 prefeituras dentro de oito mil (incluindo Milão e Bolonha) e em 26 províncias dentre 69”8. O PSI caminhava para se tornar a principal força política em seu território, no entanto, os eventos situados no “biênio vermelho” frustaram os planos reformistas da legenda.
Paralela a esquerda, no imediato pós guerra, passou a se desenvolver uma nova direita que rapidamente foi assimilando pretensões hegemônicas. Diversos teóricos apontaram como movimentos fonte para o fascismo o nacionalismo italiano (especialmente em sua versão militar, através dos arditi, tropas de elite, muito dos quais tendo lutado na Guerra), e o sindicalismo revolucionário, que tinha no teórico francês Georges Sorel seu principal mentor. Tais movimentos:

Introduziram na política a exaltação da ação direta e da violência, a teoria das minorias de vanguarda que intuem e expressam a vontade coletiva – da nação ou da classe -, e a função do mito na mobilização das massas. Ambos os movimentos eram por isso antiliberais, antiparlamentares, antidemocráticos, antisocialistas, antipacifistas, antireformistas, antihumanitários. (…) Enquanto os sindicalistas revolucionários queriam criar uma nova civilização do trabalho, uma comunidade de “produtores” livres e autônomos, o nacionalismo afirmou o valor absoluto da nação, concebida como uma espécie de grande organismo natural, em que os indivíduos e as classes tinham uma posição instrumental e subordinada. (…) Modernidade, para o nacionalismo, significava luta pela potência e a conquista: ela reclamava o sacrifício da liberdade pela grandeza da nação. (…) Através do nacionalismo, a tradição do Risorgimento é separada da ideia de liberdade e unida a uma concepção autoritária e imperialista do Estado nacional9.

O verniz cultural foi fornecido pelo Futurismo de Marinetti, com sua exaltação a velocidade, a ação, a audácia e a violência. Os parcos substratos filosóficos serão fornecidos por Benedetto Croce e sobretudo por Giovanni Gentile, entusiasta do fascismo. A partir de 1918, passa a circular o periódico Rinnovamento, dirigido por Alceste De Ambris. Edmondo Rossoni10, a frente da UIL (Unione Italiana del Lavoro), dava os primeiros passos para o sindicalismo corporativista. Correndo por fora, Mussolini assinava seu jornal Popolo d'Itália, ainda de contornos ideológicos indefinidos, mas já pendendo para a direita. O fascismo esteve presente entre setores do movimento operário, ligados ao sindicalismo revolucionário, empolgou camadas da aristocracia fundiária, muitos burgueses, mas sua base de massas sempre esteve presente nos setores médios da sociedade, ou seja, na pequena burguesia, ou classe média. Isto é ponto pacífico entre os estudiosos do tema, Gramsci, observando in loco o crescimento do fascismo, faz a seguinte análise acerca da pequena burguesia de seu país:

O processo de desagregação da pequena burguesia (na Itália) se inicia na última década do século passado. A pequena burguesia, com o desenvolvimento da grande indústria e do capital financeiro, perde toda importância e é afastada de qualquer função vital no terreno da produção: torna-se uma classe puramente política (…).
A pequena burguesia, que perdeu definitivamente qualquer esperança de reconquistar uma função produtiva, (…) busca de todos os modos conservar uma posição de iniciativa histórica: ela macaqueia a classe operária, também faz manifestações de rua. Essa nova tática se realiza nos modos e nas formas possíveis a uma classe de falastrões, de céticos, de corruptos.
A pequena burguesia, mesmo nessa sua última encarnação política que é o “fascismo”, revelou definitivamente sua verdadeira natureza de serva do capital e da propriedade agrária, de agente da contra-revolução. Mas revelou também que é fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer tarefa histórica (...)11

Crítica ainda mais mordaz se encontra no artigo “Forças Elementares”, escrito por Gramsci em abril de 1921, neste, o líder comunista realiza uma sondagem psicológica sobre o caráter violento do povo italiano:

O fascismo tornou-se assim uma expressão de nosso costumes, identificando-se com a psicologia bárbara e anti-social de alguns estratos do povo italiano, ainda não modificados por uma nova tradição, pela escola, pela convivência em um Estado bem organizado e bem administrado. Para compreender todo o significado dessas afirmações, basta recordar que a Itália tinha o primado em homicídios e linchamentos; que a Itália é o país onde as mães educam os filhos com golpes de tamanco na cabeça, um país onde as jovens gerações são menos respeitadas e protegidas; que, em algumas regiões italianas, parecia natural, até poucos anos atrás, pôr uma focinheira nos vindimeiros para que não comecem as uvas; que, em algumas regiões, os proprietários trancavam a chave os seus trabalhadores nos estábulos, quando estes voltavam do trabalho, a fim de impedi-los de reunir-se e de frequentar as escolas noturnas12.

O atraso cultural e moral da pequena burguesia e dos estratos menos privilégiados italianos é fruto do desenvolvimento desigual e combinato dessa Nação, resultado do Risorgimento, de um modelo capaz de forjar regiões altamente ricas e industrializadas, instituições alinhadas ao que havia de mais sofisticado em termos culturais e científicos, e manter, ao mesmo tempo, regiões condenadas a mais brutal opressão feudal, condenando milhões de cidadãos a miséria e ao obscurantismo.
É neste ambiente que Benito Mussolini funda, em 23 de março de 1919, em Milão, o primeiro fasci de combatimento13, num evento modesto, que não contou com mais de 150 participantes. O veículo de imprensa do novo movimento passou a ser o já atuante Popolo d'Itália, dirigido pelo futuro Duce. Ao grupo recém fundado se reúnem futuristas (o próprio Marinetti esteve presente na reunião de fundação do fasci), arditi veteranos da Guerra, sindicalistas revolucionários, esquerdistas descontentes com o imobilismo do PSI, intelectuais de direita. Mussolini sempre se caracterizou como um político ardiloso e oportunista, atento as tendências de seu tempo. Sua fama de radical começou se formar no tempo de sua militância no PSI, quando tomou parte ativamente da settimana rossa (semana vermelha), uma série de protestos violentos contra reformas contrárias aos interesses da classe trabalhadora, promovidas pelo gabinete Giolitti, nos distúrbios vários operários foram assassinados pela repressão. O líder dos fasci ganhou a simpatia dos nacionalistas e dos arditi ao apoiar a participação de seu país na Grande Guerra. Seus discursos violentos, seus ímpetos voltados a ação e seu pretenso radicalismo o punha em sintonia com as vanguardas reacionárias de seu tempo.
Um interessante perfil de Mussolini é traçado por Angelo Tasca, dirigente socialista que o conheceu pessoalmente, segundo este militante, o líder direitista concebia suas ideias a partir “de leituras de segunda mão, ainda que com segurança, plagia a “vontade de poder” de Nietzsche, o “único” de Stirner, a intuição bersoniana, o “mito” de Sorel, o pragmatismo, e como último descobrimento, o relativismo de Einstein. Só se utiliza das ideias para depois se desembaraçar delas. Se o reprovam por haver traído seus princípios, responde com seu compromisso exclusivo com a realidade e com os fatos, “se não é necessário ser consequente” com os princípios, onde está a traição? A ação é a única coisa que conta, e nesse nível não se traiciona: se ganha ou se perde”14.
Em que pese toda sua disposição para a ação, os fasci permaneceram como um movimento modesto em seu primeiro ano de existência, a primeira incursão política de Mussolini, nas eleições de novembro de 1919, redundaram num retumbante fracasso.

1TOGLIATTI, Palmiro. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978. p. 01

2Idem, p. 5

3POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 32

4Gramsci executa sua análise norteado pelas premissas lançadas por Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, livro referência para investigações conjunturais de viés marxista. Marx toma a França como exemplo clássico para a estruturação burguesa do Estado, região onde foi possível a formação de uma base de sustentação para o Estado de natureza burguesa, graças a reforma agrária realizada no país logo após a Revolução iniciada em 1789. A distribuição de terras se deu as expensas de propriedades confiscadas aos nobres a ao clero, fator que ajudou a formar uma poderosa camada de pequenos e médios produtores rurais, base do exército e do Estado. Países como Alemanha e Itália, ao não promoverem a reforma agrária (ou fazê-la de modo incompleto, como no caso alemão), careciam de uma base sólida para a manutenção do Estado liberal burguês. Para o caso italiano: GRAMSCI Antonio. Escritos Políticos, vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p.107; Para texto de Marx: MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2008.

5GRAMSCI Antonio. Op. Cit. p. 122

6POULANTZAS, Nicos. Op. Cit. p. 36

7 ESCORSIM, Leila. Mariátegui: Vida e Obra. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2006. p. 94

8SECCO, Lincoln. Gramsci e a Revolução. São Paulo: Alameda, 2006. p.34

9 GENTILE, Emílio; FELICE, Renzo de. A Itália da Mussolini e a Origem do Fascismo. São Paulo: Ícone Editora, 1988. p. 18

10Edmondo Rossoni passou uma temporada de sua vida no Brasil, período em que militava no movimento anarquista, em 1909 liderou uma greve na empresa Santa Marina, os grevistas desta empresa foram sumariamente demitidos, cerca de 50 funcionários, que juntamente a suas famílias foram expulsos da vila operária contígua a fábrica. Rossoni atuava como professor, ministrando aulas para os filhos dos operários. Os grevistas demitidos acabaram se fixando no então distrito de Osasco, Zona Oeste de São Paulo. Nesta localidade, Rossoni tentou organizar uma cooperativa de vidreiros, iniciativa bloqueada graças a ação do comendador Paulo Prado, temeroso em perder a exclusividade na fabricação industrial de vidros no Brasil. Poucos anos depois, Rossoni foi expulso do Brasil por atividades anarquistas. Para mais informações sobre Rossoni e os anarquistas de Osasco: SANTOS de OLIVEIRA, Sérgio Luiz. “O Grupo (de Esquerda) de Osasco. Movimento estudantil, sindicato e guerrilha (1966-1971)”. Dissertação de mestrado: FFLCH-USP, 2011.

11Este trecho foi retirado do artigo “o povo dos macacos”, escrito por Gramsci em janeiro de 1921, o autor faz alusão a uma novela escrita por R. Kipling, “Livro da Selva”, na qual o tal “povo dos macacos” representa um grupo que se acha superior aos demais animais da selva. GRAMSCI, A. Op. Cit. p. 30-34

12Idem, p. 57

13Os fasci eram associações recreativas de jovens que remonta a Idade Média e mesmo ao Império Romano, seu simbolo era o feixe de trigo, objeto que sozinho se rompe com facilidade, porém reunido em grande quantidade, torna-se resistente como aço. Geralmente os fasci eram organizados por jovens católicos.

14TASCA, Angelo. El Nacimiento del Fascismo. Barcelona: Ediciones Ariel, 1967. p. 29 (tradução livre)



* Artigo escrito por Sérgio Luiz Santos de Oliveira, doutorando em História






2 comentários:

  1. Excelente artigo! Sucinto, objetivo e sem tergiversações. Historicamente muito preciso. Parabéns ao autor e ao blog.
    Castor

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  2. Valeu Castor Filho, fique atento a segunda parte do artigo, abração!

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