sexta-feira, 15 de julho de 2011

Sobre o centenário Nelson Cavaquinho

Nelson Cavaquinho, o filósofo do samba





O ensaio “Rugas: sobre Nelson Cavaquinho”, de Nuno Ramos, talvez seja a melhor análise já escrita sobre a obra do sambista, que faria 100 anos em 2011 se não tivesse morrido de enfisema pulmonar em 1986. Trata-se, em linhas gerais, de uma tentativa de decompor a originalidade de sua estética musical e poética e, ao mesmo tempo, de localizá-la no tempo da história da música popular brasileira atribuindo-lhe valor e sentido.
O ex-policial que conheceu a Mangueira e os prazeres da boemia fazendo rondas noturnas a cavalo no morro – “o pior soldado da história do Polícia Militar”, como definiu a si próprio – é apresentado por Ramos como um poeta peculiar, apegado ao trágico, que acompanha as suas “melodias alpinistas” por meio de um toque de violão rústico e único.
Às considerações do artista plástico e escritor, gostaria de acrescentar, modestamente, mais algumas. Para mim, Nelson Cavaquinho é um sambista-índice do povo brasileiro, como poucos. Em sua vida e obra estão contidos os dramas cotidianos da nossa gente sob uma percepção individualizada. Sua produção artística sintetiza o Brasil de uma perspectiva subalterna. Até a sua figura, algo cabocla, algo mulata, é emblemática para pensar nessa questão.
Em Nelson Cavaquinho, encontramos o que Michel de Certeau talvez chamasse de “microrresistência”, a habilidade de transformar fatos banalizados da vida numa metrópole – nesse caso, o Rio de Janeiro – em fragmentos de uma memória popular e coletiva. Ligia seria apenas mais uma entre os inúmeros moradores de rua da praça Tiradentes, se Nelson não tivesse singularizado a sua história nos versos de “Tatuagem”, por exemplo. (o historiador Francisco Rocha já havia apontado a presença dessa característica na obra de Adoniran Barbosa.)
No entanto, Nelson Cavaquinho não fazia a chamada “música de protesto”, sua temática não abordava as “questões sociais”. Ele cantava prioritariamente a tragédia dos amores que se transformam em desilusão e a proximidade da morte diante de uma vida que já passou e cujo sentido não foi encontrado. Mas quantos amores já se desfizeram e quantas vidas se tornaram vazias por causa da precariedade material tão característica de nossas classes populares? Nelson sabia que, na música popular, dor rima melhor com amor do que com mais-valia, com o perdão do clichê.




Outras dimensões do nosso imaginário também são contempladas em sua obra. A perspectiva religiosa é central. Sua poética reinventa a sensibilidade mística do brasileiro. Quem assistiu ao brilhante documentário “Santo Forte”, de Eduardo Coutinho, perceberá isso mais facilmente. Nos depoimentos dos entrevistados, o catolicismo está sempre no plano das solenidades, lugar que lhe cabe enquanto religião quase oficial instituída. Mas nem por isso consegue eclipsar por inteiro algumas manifestações oriundas da umbanda e do candomblé, religiões que enfatizam as tradições dos povos indígenas e, principalmente, dos negros da nossa constituição social.

“Quando eu ouço as badaladas do sino daquela igrejinha / Julgo-me ainda feliz e que és toda minha”, versos de “Devia ser condenada”, música feita por Nelson em parceria com Cartola, são um exemplo entre tantos outros que apontam para uma inspiração católica na obra do sambista. Mas credos marginalizados também se fazem presentes, mesmo que de maneira indireta ou inconsciente e ainda que o autor se considerasse um “católico apostólico romano”, como a maioria dos personagens do filme de Coutinho.
“Pranto de Poeta” é emblemática nesse sentido. “Em Mangueira / Quando morre um poeta / Todos choram” são versos que anunciam um dos temas mais recorrentes em Nelson: a morte. No axexê, ritual fúnebre afro-brasileiro, canta-se e dança-se  em homenagem ao morto por até seis dias seguidos, ao som de instrumentos de percussão. O silêncio sepulcral, que caracteriza o luto católico, é estranho ali. Se a pessoa cumpriu o seu odu (destino), viveu bastante e bem, não é necessário chorar a sua morte, a menos que seja “através de um pandeiro ou de um tamborim”.



Felipe  Carrilho é historiador e autor do livro “Futebol, uma janela para o Brasil – As relações entre o futebol e a sociedade brasileira”



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