sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Serra cria “apartheid” no sistema público de saúde





Brasil da Fato



Com nova lei, organizações sociais e planos de saúde são presenteados por tucanos

Com nova lei, organizações sociais e planos de saúde são presenteados por tucanos

16/09/2009


Eduardo Sales de Lima
da Reportagem



No dia 14, fazia quatro dias que a neta de Lúcia Rejane estava internada na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Recém-nascida, a menina possui um tumor na parte externa de sua cabeça. Ela permanece internada porque a máquina de ressonância magnética está quebrada e só esse exame permitirá o diagnóstico: tumor maligno ou benigno. Preocupada, tensa, Rejane fumava dentro do complexo da Santa Casa, num espaço exterior. O hospital é público e administrado por uma organização social (OS), a Irmandade Santa Casa de Misericórdia do Estado de São Paulo.

A alguns metros de Rejane, uma contradição. Existe um outro hospital, o Santa Isabel, que só atende a pessoas conveniadas e também pertence à Irmandade Santa Casa. Causa estranheza, entretanto, um hospital privado ocupando um complexo hospitalar público.

A porta do pronto-socorro do hospital Santa Isabel é automática, seu interior é bem acabado, mas o mesmo se encontra vazio. Do lado dos atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), contando 50 metros de distância, cerca de 150 pessoas lotavam um pronto-socorro.

Rejane não estava no PS, mas, diante da sua realidade e das dezenas de pessoas esperando por atendimento médico, desabafa: “A gente não tem dinheiro e fica assim; é ruim ter essa diferença, mas os governantes querem assim”. A dona de casa reclamou também da falta de informação e do péssimo atendimento dado a sua neta.

A “diferença” de tratamento citada pela avó aflita poderá aumentar ainda mais com a nova lei aprovada pelo governador de São Paulo, José Serra (PSDB). Com a mudança, o tucano poderá ampliar a terceirização de unidades públicas de saúde para entidades privadas em São Paulo e permitirá que até 25% dos atendimentos sejam dedicados aos planos de saúde. Ou seja, os hospitais estaduais gerenciados por OSs serão reembolsados por atendimentos prestados a pacientes que tenham planos de saúde.

O deputado estadual Raul Marcelo (Psol) explica que o que já é presenciado por Lúcia Rejane também o será por inúmeras pessoas. “Vai criar o apartheid nos hospitais. Nas Santas Casas já existe uma porta do SUS e outra de um órgão privado”. Como na realidade presenciada por Lúcia Rejane, Raul reforça: “é a porta do plano de saúde vai ser a modernizada”.

Mais. Para os críticos da nova lei, o atendimento a convênios prejudicará os pacientes mais pobres, que comumente enfrentam filas enormes, enquanto pessoas com cobertura privada desfrutarão, dentro da rede pública, de melhores serviços. Em declaração ao Correio da Cidadania, o diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Mário Scheffer, reforça o conceito de divisão social já dito pelo deputado Raul Marcelo e também acredita que "isso cria um verdadeiro apartheid dentro do sistema".

É só fazer as contas. Agora, as OSs vão atender 75% dos usuários do SUS e 25% de clientes com planos de saúde. Quer dizer, um pessoa que antes esperava sete meses para ser atendida por um endocrinologista, por exemplo, terá um acréscimo de 25% no tempo.

Para a administração tucana, o atendimento de planos traria mais recursos ao setor público. Mas a promotora pública Ana Trotta Yarid entrará com ação de inconstitucionalidade contra o projeto, que visa somente “abrir caminho para a entrada das organizações".

Abre caminho para um setor e literalmente presenteia outro. Ela lembra, em entrevista ao Correio da Cidadania, que o governo sempre teve a possibilidade de cobrar dos planos pelos atendimentos que esses utilizaram na rede pública. O próprio secretário do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Ismar Barbosa Cruz, afirmou no início deste ano que a dívida dos planos de saúde com o SUS é de "no mínimo, R$ 4,3 bilhões".

Nas tetas estatais

Raul Marcelo chama atenção para dados de um relatório do Dieese. Ele mostra que, em 2004, foram gastos R$ 600 milhões com OSs e, em 2008, foram gastos mais de R$ 1 bilhão.

Roberto*, funcionário de uma unidade de Assistência Médica Ambulatorial (AMA) da zona leste da capital paulista, gerenciada por uma OS, denuncia que foram gastos, só para a construção de um jardim estilo japonês, cerca de R$ 20 mil, sem nenhum tipo de fiscalização.“Isso revoltou os funcionários”, diz.

Por falar em revolta dos funcionários, a terceirização como consequência da criação das OSs é fator preponderante para a diminuição dos encargos trabalhistas. Entre 2000 e 2007, os gastos proporcionais com as OSs cresceram 114,14%, saltando de 9,76% para 20,90% dos recursos da saúde. Já as verbas para “pessoal e encargos sociais” caíram, proporcionalmente, 26,08%, saindo do patamar em 2000 de 53,58% para 39,6% em 2007. Esse dados constam do Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária (Sigeo), da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo.

O governo economiza custos e obtêm maior lucratividade. Roberto, entretanto, assinala que na AMA onde trabalha nunca observou a contratação de tantos funcionários, porém, todos terceirizados. Assim como chamou a atenção da reportagem o excesso de seguranças na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Foram observados cerca de 15 seguranças.

Assanhado

Além de abrir as portas da bonança para as OSs e os planos de saúde, em dezembro de 2007, o governador ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin), com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), para derrubar a lei estadual que criou os Conselhos Gestores de Saúde no SUS.

“O destaque mais negativo [com a aprovação da nova lei] é o fato dela desarticular o pouco que conquistamos no Brasil. Em primeiro lugar, a saúde é direito e dever do Estado. Em segundo lugar, ela tem que ter o controle social”, defende Raul Marcelo.

*nome fictício



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