Aprende Europa...
“Não houve propriamente uma revolução”, disse a deputada social-democrata Sigrídur Ingadóttir, quando a entrevistei em seu escritório, em Reykjavik, na Islândia. “Houve, sim”, retruquei. Não daquelas tradicionais, com combates, fugas, tomadas de cidades etc. Foi uma revolução pacata. Mas houve. Uma pequena revolução no círculo ártico.
Policial acompanha protesto pacífico em frente ao Parlamento islandês em 2009. Manifestantes pedem um “governo das ruas”. País disse não às receitas do FMI e da União Europeia. Fotos: Bob Strong/Reuters (acima) e Intis Kaunins/Reuters
Em 2008, a Islândia foi o primeiro país europeu a submergir na crise financeira mundial, a partir da quebra do Lehman Brothers nos Estados Unidos. A crise islandesa não teve precedentes na história. Da noite para o dia seu sistema bancário faliu por inteiro, e arrastou o governo e o país.
Da noite para o dia? “Nem tanto”, afirmou o professor da School of Business Vilhjálmur Bjarnasson, em entrevista à Revista do Brasil na Universidade da Islândia. “A crise começou muito antes, quando o sistema bancário islandês foi privatizado. A partir daí não houve nenhuma supervisão. Cresceu sem limites. Nesse tempo todo, os sinais foram se acumulando. Os bancos começaram a captar empréstimos no exterior. Houve uma tentativa de transformar a Islândia numa nova Suíça, um centro financeiro internacional. Só que a Suíça levou 200 anos para se tornar um. Aqui, queriam conseguir em cinco ou dez anos. Não havia gente preparada para administrar isso.”
O professor foi taxativo: “Além disso, houve desonestidade. Os responsáveis diretos pela crise foram 30 homens e três mulheres, de dentro do sistema financeiro. Ocultaram informações. É muito difícil provar isso num tribunal. Mas os passos da crise foram objeto de uma investigação por parte do Parlamento. Está tudo lá”.
Assim mesmo, é claro que houve um momento decisivo. A partir da crise que foi se alastrando pelo sistema financeiro norte-americano e daí para o mundo, em 2007, os sinais de que algo estava errado se acumularam. Em 2008 os fornecedores de divisas internacionais para os bancos islandeses cortaram os créditos. Os três grandes bancos islandeses – o Glitnir, o Landsbank e o maior, o Kaupthing – viram-se impossibilitados de rolar suas dívidas, e tiveram de sofrer intervenção do Estado.
No começo de outubro de 2008, a bomba explodiu. A brasileira Erika Carneiro viveu esse momento. “Houve um dia em que o país parou. Todo mundo parou de trabalhar. As pessoas ficaram ouvindo notícias pelo rádio, pela TV. Nada funcionava. Meu marido, Hlynur Hreisson, trabalhava numa empresa de consultoria econômica. Quando ele voltou para casa à noite, era certo: tinha acontecido uma grande catástrofe. Algum tempo depois, ele perdeu o emprego. Tivemos de sair do país. Eu consegui um emprego na Alemanha, fui para lá com nossa filha. Ele tentou na Noruega, não conseguiu”, relembra ela. “Os anos seguintes foram muito difíceis. Tempos depois ele acabou conseguindo um emprego aqui. Fiquei na Alemanha com nossa filha. Foi complicado.”
Recuperação
Erika está de volta a Reykjavik, com o marido, e eles têm mais uma filha. Não se pode dizer que a Islândia tenha superado inteiramente a crise, mas sem dúvida se recuperou. Foi o primeiro país europeu a entrar nela, mas também o primeiro a reagir. Aliás, o único. Com planos de austeridade recessivos, Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália estão nela mergulhados até os olhos. Outros países, como o Reino Unido, até os joelhos. França e Alemanha, os países mais poderosos da zona do euro, permanecem na margem do abismo. O que, afinal, aconteceu à beira do círculo polar?
A partir de outubro de 2008 seguiram-se protestos e marchas defronte ao Parlamento em Reykjavik. Tudo em proporção islandesa. Seus 320 mil habitantes caberiam em Vitória, no Espírito Santo. Dois terços dessa população vivem na área da capital, que tem a dimensão de Palmas, no Tocantins. As manifestações reuniram 5 mil, 6 mil pessoas. Houve enfrentamentos. A polícia lançava gás pimenta e lacrimogêneo. Os manifestantes respondiam com pedras e... bolas de neve.
No começo de 2009 o governo conservador caiu. Na eleição que se seguiu, firmou-se um governo de coalizão, à esquerda, com os Verdes e o Partido Social Democrata na liderança. As coisas começaram a mudar. A reportagem conversou com o atual ministro da Indústria e da Inovação, Steingrímur J. Sigfússon, ligado ao Partido Verde e um dos líderes da oposição ao Partido Independente, conservador, que estava no poder quando houve a crise. A partir de 2009, foi por três anos ministro das Finanças do país. Segundo ele, há muitas lições a tirar da crise.
“A Islândia tinha uma economia superaquecida, com um sistema bancário gigantesco para o país, e sem supervisão alguma. Todas as falhas de gestão foram objeto de uma investigação parlamentar concluída em 2010. Em poucos meses a Islândia perdeu 85% de seu sistema bancário”, lembra o ministro. “Instalaram-se três crises: do setor financeiro; da moeda, com uma desvalorização brutal da krona; e uma crise econômica, com a retração da produção, do comércio e do emprego.”
Mas o país escolheu o próprio modelo, destaca Sigfússon – diferente das receitas que tentam emplacar na Grécia ou na Espanha. “As bases de nosso modelo foram proteger o sistema de bem-estar social, agir imediatamente e equilibrar a austeridade com aumento seletivo de impostos. Nosso sistema tributário, que tinha alíquota única, foi reformado. Criaram-se três alíquotas, de modo que os mais ricos e os ganhos de capital contribuíssem mais. Aumentamos o imposto sobre tabaco e álcool.”
O ministro destaca ainda que houve medidas de ajuda aos desempregados, transferindo recursos do seguro-desemprego para a educação e programas de treinamento e qualificação. “Nossa economia voltou a crescer e o desemprego caiu, provando que tomamos medidas certas do ponto de vista social e também econômico”, afirma.
O professor Vilhjálmur pondera que a crise islandesa foi diferente da grega, por exemplo, onde foi o setor público que se endividou. Assim, em sua análise, a Islândia se equilibrou rapidamente por ter priorizado, primeiro, a reestruturação do sistema bancário, estimulando depósitos, e não empréstimos. “Não houve privilégios ao sistema bancário internacional privado. Com isso, muitos cidadãos foram poupados.” Em segundo lugar, o governo protegeu a Empresa de Eletricidade da Islândia, que continuou a produzir energia para o país, a indústria, o comércio. Em terceiro, protegeu a empresa de Reykjavik que distribui água quente e calor para os lares. “Ou seja, a Islândia saiu-se melhor porque privilegiou os cidadãos, não os investidores financeiros internacionais.”
Reforma constitucional
Essa visão de enfrentamento da crise já representaria uma alternativa quase revolucionária em relação à ortodoxia neoliberal que impera no restante da Europa e na zona do euro, em particular. Mas a resposta islandesa não parou por aí. O novo Parlamento decidiu empreender uma reforma da Constituição, vigente desde 1944, quando o país se tornou independente da Dinamarca.
E o processo foi original. Primeiro, escolheu-se uma espécie de Assembleia Nacional Constituinte, com 1.500 participantes. Essa assembleia debateu exaustivamente as balizas para um novo projeto de Constituição. Depois, elegeu-se uma comissão de 25 cidadãos sem vínculos partidários, que deflagrou um amplo processo de consultas pela internet. A seguir, esse grupo redigiu o anteprojeto e o entregou ao Parlamento, que dará a última palavra. O Legislativo, contudo, decidiu também realizar um plebiscito sobre a nova Constituição. O referendo ocorreu em 20 de outubro, com seis questões. O comparecimento foi de cerca de 50% dos eleitores.
A deputada social-democrata Sigrídur Ingadóttir ressaltou que o processo foi muito amplo e participativo. “O referendo foi consultivo, não decisório”, disse ela. “Mas é um guia para o Parlamento. Os dois partidos do governo estão a favor da nova Constituição, junto com um da oposição. Há um partido mais conservador completamente contrário a ela, enquanto outra agremiação oposicionista parece querer colaborar com o governo”, relata a deputada. Ela explica que ainda há ajustes técnicos a fazer antes de o Parlamento bater o martelo. Mas dois terços dos votantes no referendo se declararam a favor da proposta, e isso não poderá ser ignorado.
A nova proposta mantém o Parlamento como o fórum legal mais importante e melhora a representatividade dos cidadãos. Antes, o voto de quem vivia na área da capital valia a metade do de quem vivia fora dela. Agora, vai valer o princípio de um eleitor, um voto, igual para todos. Há um avanço democrático, portanto. Outra mudança se deu quanto aos recursos naturais. Só 3% deles são propriedade privada. E a nova Carta Magna estabelece que os 97% restantes são propriedade da nação. Não do Estado: eles não podem ser vendidos. Quem quiser explorá-los privadamente vai ter de pagar preços de mercado. Outra novidade importante é que agora um certo número de cidadãos poderá requerer plebiscitos nacionais. Aumentará, portanto, a democracia direta. A nova proposta de Constituição amplia ainda o capítulo dos direitos humanos.
Num continente onde os governos são cada vez mais refratários a plebiscitos e outras formas de democracia direta, o modelo da Islândia tem um perfil revolucionário. Foi, aliás, a ideia de um plebiscito que derrubou Yorgyos Papandreou do governo grego, por imposição dos líderes mais fortes da Comunidade Europeia, a dupla Merkozy, formada pela alemã Angela Merkel e pelo ex-premiê francês Nicolas Sarkozy. A ideia do golpeado Papandreou era consultar a população grega quanto a ir ou não para o sacrifício a ser imposto pelo arrocho do programa neoliberal de combate à crise.
Resta uma questão – entre outras – complicada. Como parte do arranjo pós-crise e do pedido de ajuda ao Fundo Monetário Internacional (cuja cartilha, como se vê, o país não adotou), a Islândia pleiteou a entrada total na União Europeia. Aliás, há no país defensores da adoção do euro, já que sua moeda não tem convertibilidade internacional. E agora?
O ministro Sigfússon lembra que a resolução adotada foi começar um processo de negociação. “Essa é uma questão que divide o governo. Meu partido é contra, mas o Social Democrata é a favor da entrada na União Europeia. Por outro lado, o fato de termos a coroa foi prejudicial num primeiro momento, porque sua desvalorização catapultou a dívida pública”, observa.
“Mas isso também deu competitividade ao país. Retomamos o crescimento a partir de 2011, com cerca de 2,5% ao ano. O desemprego caiu de 10% para 6%. Se hoje houvesse um plebiscito, creio que o ‘não’ venceria. Mas vamos aguardar o que a negociação nos trará.”
Já a deputada Sigrídur disse ser favorável à União Europeia. A reportagem questionou-a se a Islândia poderia empreender seu modelo de reação à crise se tivesse de responder à UE. Se seria possível reformar o sistema financeiro, privilegiar depositantes, em vez de credores internacionais, e nacionalizar 97% dos recursos naturais, caso Reykjavik estivesse sob a batuta de Merkozy.
Sigrídur responde que é necessário dar tempo ao tempo. Em sua análise, se um grande número de países da UE é dominado por governos conservadores, isso pode mudar, como atesta a eleição de François Hollande na França. As demais nações da Europa também podem aprender a valorosa lição de democracia ensinada ao mundo pelo pequeno país do círculo polar.
Meu amigo. O drama é que a Islândia deve ser menor que Pindamonhangaba... Sinto muito, sou grato.
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