A crise deveria tê-las reduzido a pó, mas as ideias neoliberais são constantemente renovadas, segundo um processo de produção permanente, no seio de verdadeiras fábricas: instituições internacionais, universidades, think tanks. Por Michel Husson
Promover políticas cujos efeitos contraproducentes são comprovados (recessão e precariedade) demonstra uma obstinação dogmática
Em França, muitas centenas de economistas reuniram-se para dizer até que ponto estavam “aterrados” em razão das políticas levadas a cabo na Europa. Diante da crise, as medidas de apoio à atividade depressa foram substituídas por uma austeridade generalizada. Ora esta desencadeia uma espiral recessiva que não pode resolver a questão da dívida, e muito menos do desemprego. Esta vontade cega de voltar ao business as usual vem acompanhada de uma aplicação brutal das receitas neoliberais, que se parece muito a uma terapia de choque.
Podemos falar aqui de dogma, no sentido de que o corpus neoliberal é um conjunto “de ideias mortas que se passeiam ainda entre nós”, como explica John Quiggin num livro notável1. Ele cita cinco, entre as quais a hipótese da “eficiência dos mercados” (os preços determinados pelos mercados financeiros representam a melhor estimativa possível de um investimento) ou a “teoria do escoamento” (trickle down economics) segundo a qual o bem-estar dos “1%” acaba por beneficiar o conjunto da população.
A crise, e o aumento das desigualdades que a precedeu, deveriam ter reduzido a pó estas ideias: mas elas sobrevivem, como testemunham a ausência de medidas significativas de regulação financeira ou de redução das desigualdades. Isto acontece porque o dogma neoliberal é constantemente renovado segundo um processo de produção permanente, no seio de verdadeiras fábricas: instituições internacionais, universidades, think tanks. Estes “aparelhos ideológicos” são ricamente dotados de meios e tendem a marginalizar todo o programa de investigação heterodoxa. A sua legitimidade assenta na ideia de que a economia é uma ciência de leis incontornáveis, tão intangíveis quanto as leis da física. Este cientifismo é o fundamento sobre o qual pode construir-se o crescimento económico.2 Eis porque certos economistas podem sinceramente pensar que são depositários da razão económica. Mas nem todos. Um grupo de economistas3 tomou recentemente posição “sem opção ideológica” a favor de Nicolas Sarkozy, precisando que “nem de direita nem de esquerda, a ciência económica ajuda a deliberar as escolhas [sic]”.
Angela Merkel enunciou de maneira muito clara as “reformas estruturais” que deveriam acompanhar o “pacto do crescimento” proposto por Mário Draghi, presidente do BCE: “os custos salariais não devem ser muito elevados, as barreiras no mercado de trabalho devem ser baixas, para que cada qual possa conseguir um emprego”4 Aqui temos dois artigos essenciais do dogma: o desemprego resulta de um “custo do trabalho” muito elevado e da rigidez do mercado de trabalho. Temos o direito de falar aqui de um dogma, porque esta causalidade nunca foi estabelecida. No entanto, muito se investiu para consegui-lo e a OCDE construiu mesmo toda uma bateria de indicadores com este fim.
Mas o resultado foi um fracasso: apesar dos estudos truncados, dos “consensos” duvidosos e das regras de três abusivas, nenhum resultado sólido pôde ser identificado. O último relatório da OIT (Organização Internacional do Trabalho) consagra um capítulo ao balanço desta literatura e conclui assim: “Os dados empíricos confirmam a conclusão de estudos anteriores: não existe ligação clara entre a legislação protetora do emprego e o nível de emprego”.5
Promover políticas cujos efeitos contraproducentes são comprovados (recessão e precariedade) demonstra uma obstinação dogmática de que Jacques Freyssinet deu a chave: “Quando a situação melhora, isso prova a eficácia das reformas realizadas; quando a situação se degrada, isso prova a necessidade de acelerar o seu ritmo”. 6
Mas o dogma não é simplesmente irracional. Ele funda uma irracionalidade restrita, fornecendo elementos de legitimidade a políticas que procuram preservar os privilégios de uma camada social estreita. Neste sentido, o dogma é um dos instrumentos que permitem reforçar o poder do capital. Mas esta arma ideológica não é suficiente para contornar o grande dilema que a crise fez aparecer: o capitalismo neoliberal já não pode funcionar nas mesmas bases, mas não aceita espontaneamente outras regras de funcionamento. Só um grau suplementar de afundamento na crise e/ou uma pressão social suficiente poderia afastá-lo do dogma neoliberal.
Retirado de Salut et Fraternité, PDF no site hussonet.
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
1 John Quiggin, “Zombie Economics. How Dead Ideas Still Walk among Us”, Princeton University Press, 2010.
2 Philip Mirowski, “Plus de chaleur que de lumière”, Economica, 2002.
3 Bertand Belloc et alii, “Économistes, sans parti pris idéologique, nous soutenons Sarkozy”, Le Monde, 3 mai 2012.
4 Les Échos, 26 de abril de 2012.
5 ILO, “Better jobs for a better economy”, World of Work Report, 2012.
6 Jacques Freyssinet, “Trou d’air, récession ou rupture? Continuités et inflexions dans les politiques de l’emploi”, Crónica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário