quinta-feira, 31 de maio de 2012

“Doutrina do caos” que prevaleceu na Líbia ameaça Síria e Grécia, diz líder português

Opera Mundi


Para José Manuel Pureza, do Bloco de Esquerda, toda intervenção estrangeira, por mais bem intencionada que seja, é uma forma de controle

A intervenção da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) na Líbia em 2011 não apenas contribuiu para derrubar o regime do coronel Muamar Kadafi como também abriu um precedente para que questões envolvendo violações de direitos humanos sejam usadas como desculpa para violar soberanias nacionais. A opinião é do português José Manuel Pureza, professor de Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e ex-membro do Parlamento português pelo Bloco de Esquerda.


Para Pureza, que está no Brasil para uma série de palestras, esse roteiro não foi acidental e pode se repetir no caso da crise na Síria e até em países que ameaçam o status quo da Europa, como a Grécia. Ele acredita que lições podem ser tiradas com os erros na Líbia para não se repetirem no caso sírio. “A rejeição de alguns passos [diplomáticos para se chegar à intervenção no caso da Líbia] não foi casual. Construir uma realidade única durante um conflito é a maneira mais hábil para se forçar uma realidade prática. Isso vale para a Síria, a Líbia e até a Grécia: é a doutrina do caos”, afirma.



Novo humanitarismo que relativiza soberanias e justifica intervenções é uma armadilha, diz José Manuel Pureza



No último dia 21, o professor participou de um seminário no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC de São Paulo), no centro de São Paulo, e conversou com a reportagem de Opera Mundi.



Segundo José Manuel Pureza, o conceito jurídico-diplomático que baseia essas intervenções é o da “responsabilidade de proteger”, que sofreu um “alargamento” ao longo da última década. Esse conceito, abordado pela primeira vez em 2001, propõe alterações doutrinárias e práticas no tratamento das intervenções humanitárias pelo Direito Internacional. Opta por uma abordagem mais abrangente, com a proposta de reagir, prevenir e reconstruir regiões.



“Qualquer intervenção, por mais bem intencionada que seja, é uma forma de controle”, afirma. De acordo com Pureza, há uma percepção geral da opinião pública de que uma intervenção como a ocorrida na Líbia nasce de boas intenções. Estas são baseadas em dois eixos principais: um programa de “paz liberal”; e a evolução de um novo conceito de humanitarismo. No entanto, ignora-se que essas intervenções ocorrem há algum tempo em um contexto eminentemente político e jurídico.



A paz sob as armas



O programa de paz liberal, na opinião do político português, prevê uma “paz positiva”, que é exigente e ambiciosa, “não se dá apenas via o silêncio das armas” e pressupõe a noção de transformação social, atacando as raízes dos conflitos, não apenas os efeitos. Para essa paz perdurar, segundo essa teoria, seria necessário um redesenho da engenharia social, política, institucional, jurídica e econômica da área em conflito.



“Em última análise, esse programa faz apologia do intervencionismo internacional. As causas de violações e conflitos são endógenas, e as respostas, invariavelmente, exógenas”, diz Pureza. “O que tem sido a aplicação concreta? A pacificação através da liberalização econômica e política”, analisa o professor. Ele alerta para o fato de esta medida está erradamente cercada pela aura de um discurso de consenso comum, desprovido de carga política e ideológica, e disfarçada sob um natureza técnica.



A armadilha do novo “humanitarismo”



Esse segundo eixo tem origem acadêmica e reforça críticas de ONGs que passaram a considerar as operações humanitárias as quais estavam envolvidas como simplesmente paliativas ou, pior, que criavam condições para os conflitos continuarem. Após a Guerra Fira, passou-se a ter uma visão crítica do velho humanismo: imparcial, isento e universal.



Na opinião de Pureza, o real objetivo dessa transformação de atividade humanitária para uma suposta militância é a contenção de periferias turbulentas. “O discurso é benigno, convincente, moral e facilmente aceitável. Mas é uma armadilha”, Segundo Pureza, todo discurso tido como hegemônico esconde suas verdadeiras agendas.



O “humanitarismo” opõe o conceito de soberania em situações de lutas de libertação nacional, sem necessariamente apelar para intervenção no âmbito militar. “Esses autores acham que alguns aspectos de soberania podem ser exercidos por atores não nacionais: doadores, ONGs, instituições financeiras internacionais, por exemplo”. Se antes eram aplicados para países em situações de calamidade, como Somália e Haiti, agora são podem ser encontrados em casos semelhantes na Grécia, Portugal, Espanha e Itália, protesta o português Pureza.



“O discurso humanitário mudou. Já não se contenta só em salvar vidas, com alívio do sofrimento e da proteção das vítimas. O novo discurso não quer menos do que criar condições para não se gerar mais vítimas, o que é assumidamente um discurso político”, baseado em ações de prevenção, diz Pureza.



Nova ordem



Um dos exemplos mais claros dessa mudança é a guerra civil líbia, que na opinião de Pureza, apresenta um precedente inédito com a autorização do uso da força contra um Estado em exercício normal de suas funções.



Esse precedente pode ser encontrado a Resolução 1973 da ONU, relativa ao conflito líbio. Ela autorizou, além de uma zona de exclusão aérea e a imposição de um cessar-fogo, a utilização “de todos os meios necessários” [e Pureza ressalta esse termo] para a proteção de civis. Essa resolução apenas serviu para que as forças da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) bombardeassem sistematicamente as forças do governo líbio, facilitando o progresso da oposição e a derrubada do regime, meses depois. E, ao contrário do previsto, foi indiretamente responsável pela morte de milhares de civis. A medida foi aprovada por 10 votos no Conselho de Segurança da entidade, mas teve cinco abstenções (Brasil, Rússia, China, Índia e Alemanha).



Pureza lembra que países que também foram acusados de violar os direitos humanos durante a Primavera Árabe foram alguns dos principais articuladores para a aplicação do conceito da “Liberdade de Proteger”, como o Bahrein, o Catar e a Arábia Saudita.



Uma das consequências da intervenção na Líbia é que, depois dela, o êxito das revoltas populares iniciadas na Primavera Árabe ficou condicionado ao apoio de potências estrangeiras. “Marcou uma virada, tudo parou na Argélia, Marrocos, Bahrein e Iêmen [que teve mudança de regime, mas com mais dificuldade]. Os sírios pagam agora o preço do que ocorreu na Líbia”. A outra foi mais um episódio de descrédito da ONU como instituição para a manutenção da paz.



Pureza esclarece que não é contra a proteção de civis, mas que o retrocesso da doutrina da “responsabilidade de proteger”, no caso da Líbia, nada tem a ver com o apoio a estados frágeis.



Como passos necessários e anteriores à qualquer possibilidade de intervenção, Pureza cita o envio de observadores, a formulação de planos de paz e a criação de corredores humanitários, por exemplo. As sanções econômicas contra o regime também podem fazer parte desse escopo, mas Pureza acredita que elas têm, na prática, pouco alcance.






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