domingo, 17 de fevereiro de 2013

Rapper angolano, morador do Complexo da Maré, critica o racismo no Brasil e vai ter sua história contada em 130 países


O Globo

Duas Cervejas e a Conta com Badharó

Rapper angolano, morador do Complexo da Maré, critica o racismo no Brasil e vai ter sua história contada em 130 países

Badharó, rapper angolano, é personagem de filme que passa na Al Jazeera: críticas ao racismo, ao preconceito e à xenofobia do Brasil Foto: Monica Imbuzeiro / O Globo
Badharó, rapper angolano, é personagem de filme que passa na Al Jazeera: críticas ao racismo, ao preconceito e à xenofobia do Brasil


RIO - A partir desta segunda-feira, a história do rapper angolano Badharó, morador da Maré, estará em 130 países. Ele é o protagonista do documentário “Opens arms, closed doors” (“Braços abertos”), das diretoras paulistas Juliana Borges e Fernanda Polacow, que vai ao ar pela TV Al Jazeera, às 22h30m (horário de Londres), com reprises na terça (9h30m), quarta (3h30m) e quinta (16h30m). 

No Brasil, poderá ser visto pela internet <www.aljazeera.com/programmes/viewfinder/>. Caçula de dez irmãos (cinco homens e cinco mulheres), veio para o Rio em 1998, atraído pelas imagens da TV.

Fernanda diz: “Com Portugal agonizando numa crise e ataques xenófobos na Europa, o Brasil se tornou um destino bastante visado para os africanos, sobretudo os que falam português. Como temos a segunda maior população negra do mundo, eles nunca esperam encontrar uma sociedade racista.” Pois Badharó, de 38 anos, enfrentou racismo, preconceito e xenofobia. “A origem comum que temos com a África não nos faz receber os africanos melhor do que eles são recebidos em outros lugares”, acrescenta Juliana. A Maré, próxima favela a ser pacificada, tem a segunda maior comunidade angolana do país, atrás só do Brás (SP). “Deve ter uns 400 angolanos aqui, fora os filhos, que nasceram no Brasil”, calcula Badharó.

Apesar de ser músico desde 1992, ele não é conhecido no rap. “Fiz em Angola uns shows e participei de programas de rádio.” Vai lançar este ano em seu país o primeiro CD, “Independência ou morte”, e constrói um estúdio de gravação na favela, com dois sócios. Para se sustentar, é pintor de parede e tem um bar na comunidade, conhecido como Bar do Angola.

REVISTA O GLOBO: Por que você escolheu o Brasil para morar?

BADHARÓ: Eu via muita TV brasileira. Novelas, carnaval, futebol. Praia, mulheres sambando. Não tinha violência. Pensei: “Seria legal ir para o Brasil. Eles falam a mesma língua que eu. E um país com tanto negro não pode ser racista.” Imaginava que o Brasil todo era do jeito que via na TV. Cheguei e percebi que é um dos países mais racistas do mundo.

Por que você saiu de Angola?

Meu pai combateu na guerra colonial (contra os portugueses). E três irmãos meus lutaram na guerra civil, sendo que um morreu. Não queria seguir o mesmo caminho. Minha guerra é feita com o microfone. Todas as músicas que faço são de conscientização. Para o filme fiz o rap “Zulmira, descanse em paz”. É que, ano passado, num bar no Brás, um brasileiro, conhecido dos angolanos, chamou um de nós de “preto macaco”. Houve uma discussão, mas o problema parecia resolvido. Só que ele saiu, pegou uma arma, voltou com um comparsa e atirou num grupo de estudantes angolanos, matando a Zulmira.

Mas em Angola também não tem violência?

Tem miséria, fome, Aids, corrupção, mas o índice de criminalidade é muito baixo. Cheguei aqui à Maré num domingo e, já na segunda, saindo de casa, vi um cara morto, com a família chorando. Entrei em desespero, mas primo falou: “Aqui só matam quem está envolvido.“ Fui me habituando. O sonho de todos que chegam é ir para Copacabana, por causa das novelas. E alguns de fato foram morar lá. Mas o aluguel encareceu, tiveram que sair e vieram para cá.

No filme, o radialista da Maré FM apresenta você: “Estamos aqui com um rapper africano, angolano e favelado. Mais underground que isso é impossível.” Você sofre muito preconceito?

Sim. De cor, de origem, de status social. Quando cheguei ninguém queria me alugar casa: “Vou alugar para dois e amanhã tem 12.” Também não conseguia emprego. Em Angola eu era carpinteiro, mas meu primeiro trabalho aqui foi como ajudante de pedreiro. Na obra, o encarregado era cearense e nos mandava, eu e outro angolano, carregar sacos de cimento mesmo na hora do almoço. Até que perguntei por que e ele disse: “Porque vocês vieram da África.”

O documentário mostra outros exemplos de preconceito. Como quando Martaz diz: “Bené (apelido de Badharó) foi para Angola e o bar ficou cheio de brasileiros. Voltou e eles se afastaram.” O dono de uma loja de material de construção da Maré não aceita cartão de angolano e justifica: “É tudo clonado. Eles não têm endereço. Todo mundo parece igual.” Que outros casos você citaria?

Uma vez, no ônibus, entraram três caras, que logo desceram correndo. Os outros passageiros bateram palmas para mim. Um me explicou: “Eles iam roubar o ônibus, mas quando viram você desceram.” Ficaram com medo de mim. Vai ver acharam que já tinha outro cara para roubar ou que eu fosse um policial à paisana. Em outra ocasião, eu estava com um colega no ônibus. Havia uma mulher branca sentada na janela e eu do lado dela. Meu amigo estava em pé. Subiram uns caras, assaltaram todo mundo e, quando chegaram em mim, falaram: “Não se preocupe que você não vai ser roubado.” Pouparam a mim, a meu amigo e à moça. Devem ter achado que ela estava comigo. E muitas vezes o racismo no Brasil é incubado. Tem colega de trabalho branco que bebe junto, trata bem, mas pelas costas você descobre que diz: “Não dá para ficar com esses pretos.”

Você pensa em sair do país?

Não. Aqui me casei com a Marta, em 1999. Ela tem 44 anos, é filha de português com baiana. Tem duas filhas, de 30 e 22 anos, e cinco netos. Um deles, uma menina de 4 anos, eu registrei em meu nome, porque o pai não assumiu. Ela me chama de pai, eu a chamo de filha. Tenho dois filhos em Angola, mas quando saí eram muito pequenos. Eu gosto mais do Brasil do que de qualquer outro país. Os brasileiros estão mais conscientes, lutam pelos direitos humanos, pelo meio ambiente. É um país muito rico, que me ensina muito. Mesmo com racismo, a hospitalidade é grande. O país nos recebe melhor que Portugal.

E-mail do colunista: mventura@oglobo.com.br


2 comentários:

  1. Muito boa a entrevista. Parabéns!
    Estou fazendo minha monografia sobre os angolanos da Maré e as perspectivas de migração. Se vc tiver mais algum material similar... A gente pode ir trocando figurinhas. Abraço, Letícia Santanna

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  2. Oi Letícia, muito interessante o tema de sua monografia, infelizmente não tenho mais nenhum material sobre esse tema, se vc tiver algo interessante sobre esse assunto me envie. Beijão, Sergio.

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