Nossa investigação revela: brutalidade inaugurada no Carandiru alastra-se há vinte anos pela PM. Para ter paz, Estado terá de enfrentá-la
Outubro de 2012 registrou o recorde de homicídios e latrocínios na Grande São Paulo no ano: 345. Na capital, o aumento foi de quase 110% em relação ao ano anterior. O número só pode ser comparado aos 493 mortos entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, cuja macabra contagem diária (média de 55 por dia) somente tem paralelo nos 111 detentos executados pela PM no Massacre do Carandiru, em 2 de outubro de 1992. Mesmo assim, a atual crise na segurança teve destaque nos jornais e TVs apenas após as eleições. Até então, as quase cem vítimas entre policiais, principalmente PMs de baixa patente e fora do horário de serviço, e as centenas de casos de pessoas baleadas nas proximidades desses assassinatos nas horas seguintes, estavam sendo tratadas, todas, como “casos isolados”. Sem o fator eleitoral, a culpa pela violência recai agora sobre o suspeito usual: o Primeiro Comando da Capital ou, como é chamado nos telejornais, “a facção criminosa que age dentro e fora dos presídios”. Mas será assim tão simples?
Várias linhas ligam os sangrentos eventos de 1992, 2006 e 2012. No primeiro, não há dúvidas sobre quem atirou. Ainda assim, o único condenado pela chacina de presos desarmados foi o Coronel Ubiratan Guimarães, que comandou a invasão do presídio. Sua pena de 632 anos de reclusão, porém, foi derrubada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em fevereiro de 2006, quando ele já tinha sido eleito deputado estadual com o sugestivo número 14.111. Em setembro do mesmo ano, o político/coronel foi morto com um tiro no peito em seu apartamento. A única indiciada foi sua então namorada, Carla Cepollina, julgada e absolvida na primeira semana de novembro desse ano. Foi na esteira do Massacre do Carandiru que nasceu o PCC, inicialmente para impedir futuras mortandades em massa dentro das cadeias. Com o crescimento do “partido”, realmente despencaram os índices de assassinatos e estupros nas penitenciárias, além de praticamente não haver uso de crack.
O caso de 2006 é bem mais emblemático. Logo depois de o governo estadual transferir cerca de 700 prisioneiros tidos como líderes do PCC para os presídios de Presidente Bernardes e de Presidente Prudente, considerados de maior segurança, policiais civis e militares passaram a ser mortos nas ruas das principais cidades do estado. Ao todo, 59 foram assassinados, incluídos guardas civis e bombeiros, principalmente entre os dias 12 e 13 de maio. Ato contínuo, a “tropa de elite” da PM paulista, a Rota, saiu às ruas “trocando tiros” com “criminosos” e elevando como nunca as “resistências seguidas de morte”. Ao mesmo tempo, assassinos mascarados passaram a atirar em pessoas nas periferias.
Crimes de maio
O saldo de mortos oficialmente registrados entre maio e junho de 2006 passa de 600, fora os desaparecidos. Dos “confrontos” entre polícia e “bandidos”, 60% a 70% tinham claros indícios de execução (tiros à queima roupa, de cima para baixo, na região do tórax e/ou da cabeça como confirmou o perito Ricardo Molina a respeito de 124 mortos), segundo uma comissão formada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Defensoria Pública, Ouvidoria da Polícia, Ministério Público (Estadual e Federal), Ordem dos Advogados do Brasil, Conselho Regional de Medicina e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, entre outras entidades. As mortes jamais foram investigadas e até hoje ninguém está preso pelos assassinatos de civis durante esse período. A “I Guerra do PCC” teria acabado devido a um acordo, nunca admitido, firmado entre o grupo e o governo. É inegável, no entanto, o fortalecimento da facção criminosa, que extrapolou os muros das cadeias. Sem a concorrência de outro grande grupo, diminuíram também os confrontos entre traficantes rivais e as mortes por dívida de drogas, ajudando a derrubar significativamente as taxas de homicídios nas ruas (72% entre 1999 e 2011)*.
A nova onda
A trégua, contudo, parece ter chegado ao fim em 29 de maio de 2012, quando policiais da Rota cercaram supostos integrantes do PCC em um lava-rápido na Zona Leste matando seis pessoas e prendendo outras três. Ao menos um dos mortos teria sido levado vivo para a beira da rodovia Ayrton Senna e torturado antes de ser executado, conforme relatou uma testemunha. Três oficiais chegaram a ser presos mas foram absolvidos em novembro, porque a testemunha teria “entrado em contradição”. Nos dias seguintes ao confronto, PMs começaram a ser assassinados em dezenas de emboscadas. A cada morte de policial, em média mais dez pessoas são mortas, a maior parte na mesma região do assassinato, poucas horas depois do evento e por meio de homens encapuzados, em motos sem placas ou carros de vidros escuros, que atiram aleatoriamente em grupos de pessoas nas periferias (93% das mortes são registradas fora do centro expandido da capital).
Apesar do padrão óbvio, somente com a queda do secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antonio Ferreira Pinto, em 21 de novembro, a imprensa realizou um levantamento apontando que pelo menos 16 chacinas (com 28 mortes) entre junho e novembro ocorreram a menos de cinco quilômetros de onde foram executados sete policiais. E mais, o ex-chefe da Polícia Civil Paulista, Marcos Carneiro de Lima, admitiu publicamente que várias das vítimas civis fora das chacinas tiveram suas fichas criminais levantadas em delegacias distantes de suas regiões antes de serem mortas, o que leva a suspeitas de execuções premeditadas. A apuração rigorosa desses crimes, no entanto, não deve ser motivo de grandes esperanças.
Policiais bandidos
De fato, a maior probabilidade é que aconteça exatamente o contrário. Um exemplo é o aumento de 100% sobre a indenização a familiares de policiais mortos e sua extensão para oficiais vitimados fora do horário de serviço, anunciada recentemente pelo governador Geraldo Alckmin. Com isso é bem possível que as famílias dos dois policiais executados em 1º de novembro em Heliópolis recebam R$ 200 mil cada. A polícia não parece muito interessada em averiguar a fundo o que os dois, considerados “linha dura” pelos colegas, faziam juntos numa moto, à meia noite no meio da favela. Uma boa resposta pode estar na excelente matéria da repórter Tatiana Merlino, “Em cada batalhão da PM tem um grupo de extermínio”, publicada em setembro, em Caros Amigos.
Pior, para alguns analistas, muitos policiais estão sendo executados por colegas de farda, aproveitando a onda de violência como cortina de fumaça. É o que pode ter acontecido com o sargento da PM Marcelo Fukuhara, assassinado na Baixada Santista no início de outubro. Conhecido como “ninja” ou “japonês”, ele seria o chefe de um dos mais temidos grupos de extermínio da região. Logo após sua morte, um outro oficial não identificado pelo comando da PM foi preso suspeito de ser o executor, o que não impediu que oito pessoas fossem mortas em duas chacinas na mesma área, nas duas horas seguintes à morte do sargento. Segundo testemunhas, os executores foram homens encapuzados saídos de um carro preto. Fontes de dentro da polícia também afirmam que a única oficial mulher assassinada esse ano, a soldado Marta Umbelina da Silva, teria sido vítima de seu ex-marido, um ex-policial. A informação, contudo, não pode ser confirmada, já que todas as investigações seguem sob sigilo.
Palavra de mãe
Débora Maria da Silva, coordenadora e fundadora o Mães de Maio, grupo de parentes e amigos de civis mortos em 2006 conta sua versão sobre os fatos
“O que mais nos revolta é a impunidade dos policiais matadores. A explosão das mortes na periferia de São Paulo está ocorrendo há pelo menos três anos na Baixada Santista. E quem mais mata são os policiais e ex-policiais. Pra mim, essa coisa de PCC é balela pra justificar a morte de civis. Eles entram em favela, mostram listas de policiais marcados pra morrer, mas não mostram as listas de civis. O próprio antigo secretário tinha falado que todos os que morreram tinham ficha suja, mas como é que ele sabe? A verdade é que desde 2006 tem uma máfia de extermínio, com os policiais ganhando mais com bicos do que registrado na carteira. Com isso, ficam disputando os bicos e estão totalmente fora do controle do comando. Diferente do que disse o governador, quem não reage é que tá morto! Por isso a gente cobra investigação, intervenção federal e federalização dos Crimes de Maio. Porque esse estado não tem mais remendo. Tem que trocar tudo, não só a cúpula da segurança!”
Com a nova onda de violência, as Mães de Maio estão se organizando com dezenas de outros movimentos e grupos para reagir, formando o Comitê Ampliado Contra o Genocídio (veja a carta-manifesto exigindo, entre outras coisas, o fim dos “autos de resistência” em http://bit.ly/SkE9QZ). Já solicitaram uma audiência pública com o governador e com o Ministro da Justiça. Também estão promovendo atividades de divulgação de suas lutas, como marchas periódicas pela paz. A repercussão midiática, contudo, ainda é frágil. “A primeira vez que nosso nome saiu na TV esse ano foi no programa da Sonia Abraão, com o Coronel Telhada, o Comandante Camilo e o Capitão Conte Lopes nos chamando de ‘amigas de bandidos’, como fizeram com o jornalista André Caramante, que teve de sair do Brasil com medo”, diz.
* Para uma visão mais profunda e séria sobre o “crime organizado” em SP, vale a pena ler o documento 16 Perguntas sobre o PCC, em http://bit.ly/SnVgzQ