Nossos filmes já foram referência mundial, ministra Ana de Holanda, salve nosso cinema, por favor!
Do Blog do Jader Rezende
Jornal hora do povo
Texto de VALÉRIO BEMFICA
Vendo o título acima, talvez o leitor ache que estejamos sendo pessimistas. Recentemente uma película, rodada no Brasil, com elenco e diretor brasileiros, rompeu a marca dos seis milhões de espectadores. Pode parecer uma notícia alvissareira, mas não é. É apenas uma exceção, com muitas particularidades, em um cenário trágico. E note-se bem que não dissemos “um filme brasileiro”: trata-se, na verdade, daquilo que os modernosos costumam chamar de “produto” ou “conteúdo audiovisual”, não um filme. Uma associação escancarada entre os integrantes do cartel da indústria cultural, destinada a fechar um pouco mais o espaço para uma cinematografia nacional, autônoma e criativa. Nosso objetivo não é aqui fazer uma crítica estética ao filme, mas descrever o ponto em que está o cinema brasileiro, prestes a receber o golpe de misericórdia. No final o leitor compreenderá não apenas o título, mas também como o último produto global colabora para o processo de aniquilamento de nosso cinema. Vamos aos atos.
PRIMEIRO ATO – A Redução da Cota de Tela
(Ou: a parte que nos cabe no latifúndio)
Em qualquer país do mundo são comuns medidas de estímulo à produção local – em todos os setores da economia. E elas são particularmente necessárias em setores estratégicos e nas áreas onde o poder econômico dos concorrentes estrangeiros é muito forte. O cinema se enquadra nos dois casos. É estratégico – como todo o campo cultural – por tratar com o imaginário das pessoas, por ajudar a configurar a identidade nacional. E o poderio econômico da indústria cultural estadunidense é gigantesco. Por conseguinte, inúmeros países adotam medidas para garantir a existência de uma cinematografia nacional. A principal delas é a chamada cota de tela, ou seja, a reserva de um número determinado de dias para a exibição da produção local.
No Brasil esse mecanismo começou a ser adotado da década de 30 do século passado. Obviamente surtiu efeito e o cinema brasileiro começou a se desenvolver, revelar novos talentos, ganhar espaço no gosto popular. Nos anos 50 a cota chegou a 42 dias de exibição anual. Na década de 60 alcançou os 112 dias por ano e, no auge da atuação da Embrafilme, na década de 70, atingiu a marca de 140 dias/ano. Se alguém achar exagerado, é nesse patamar (aproximadamente 40% do espaço de exibição) que estão, hoje em dia, países como a França. Mas no Brasil a história foi diferente. A política de arrasa quarteirão de Collor fechou a Embrafilme e deixou à míngua os realizadores do país, que não mais contavam com uma estrutura de distribuição que lhes permitisse concorrer com o produto estrangeiro. Ainda assim, chegamos ao final do século passado com uma cota de tela de 49 dias, ou 13,5% do espaço para exibição de filmes. Era pouco, mas a produção brasileira também estava pequena (28 filmes em 1999). E também seria vã esperança achar que nos anos de ouro do neo-liberalismo o cinema nacional fosse ganhar alguma proteção. O século XXI inicia com a redução da cota para 28 dias, número que permaneceu inalterado até o final do mandato de FH.
A chegada de Lula ao poder coincide com a maior bilheteria do cinema nacional nos últimos 15 anos: em 2003 foram 21,5 milhões de espectadores, para uma cota de tela de 35 dias e 29 filmes lançados. Seria de se esperar que a partir de então o governo popular, escolhido para enterrar o entreguismo vigente, tratasse de ampliar o espaço para o nosso cinema, aumentando o tempo de exibição obrigatório e enfrentando os mecanismos de dominação do mercado impostos pelo cartel estrangeiro. Mas, infelizmente, a direção dos órgãos de cultura do país – Ministério da Cultura e Agência Nacional do Cinema em particular – foram entregues a cidadãos que tem mais identidade com a indústria cultural do que com a nação. O monopólio da exibição-distribuição foi tratado como aliado preferencial. Os incentivos à produção - que em sete anos triplicaram o volume de filmes lançados – revelaram-se uma mera estratégia para acalmar a classe. E a cota de tela, depois de algumas variações, voltou ao patamar da época tucana: 28 dias. Só que, se antes eram produzidos menos de 30 filmes por ano no Brasil, atualmente são produzidos mais de 80. Após seis anos de postura agachada do Minc e da Ancine perante as majors do “entertainment” continuamos confinados a 10% de nosso próprio mercado.
SEGUNDO ATO: O Artigo Terceiro
(Ou: Entregando o ouro ao bandido)
Se a direção dos órgãos de cultura no Brasil permaneceu com a cabeça (e, às vezes chegamos a imaginar, com os bolsos) na época do neoliberalismo e se os apetites dos oligopólios do cinema são insaciáveis, era de se esperar que a coisa piorasse. E piorou mesmo. Eles não podem se conformar nem com uma cota de tela ridícula como a que temos hoje. Como acabar com ela é difícil – seria a confissão cabal da subserviência das autoridades aos seus interesses – resolveram também dominá-la.
O caminho para isso tem um nome bastante burocrático: “artigo 3º da lei 8.685/93”. É hoje o principal instrumento de dominação da indústria cinematográfica nacional por empresas estrangeiras. Mas vamos a um exemplo concreto, para que o leitor possa ter a dimensão exata do estrago. O filme “Batman – O Cavaleiro das Trevas” arrecadou, em 2008, cerca de 33 milhões de reais no Brasil. Do valor, cerca de 50%, ou R$ 16,5 milhões, são destinados ao distribuidor e ao produtor (a Warner, em ambos os casos). Digamos que tenham sido gastos, com divulgação, cópias, lançamento e manutenção da filial brasileira, R$ 6,5 milhões. O resto – R$ 10 milhões – será remetido para a matriz. Sobre esse valor, a Warner deverá pagar 25% de imposto de renda, a bagatela de R$ 2,5 milhões. Mas, segundo o referido artigo da lei do audiovisual, a empresa pode optar por abater 70% do imposto (no caso, R$ 1,75 milhões) para investir em produções e co-produções nacionais. Ou seja, usar o dinheiro que seria pago ao governo brasileiro na forma de impostos para se tornarem sócias de filmes nacionais.
Algum ingênuo – como estão sendo muitos dos realizadores nacionais – poderá pensar: “Que mal há nisso? É mais dinheiro para o cinema!”. O mal é: a associação entre majors de produção e distribuição estrangeiras detém 80% do mercado brasileiro. As cadeias estrangeiras de exibição possuem mais de um quarto de todas as salas de cinema do país. Juntas, determinam o que será visto ou não pelos brasileiros. A única coisa que lhes escapava era a cota de tela, por ser uma obrigação legal. Com o artigo terceiro, passam a poder escolher o que será produzido ou não pelos cineastas brasileiros, passam a determinar quem ocupará a cota de tela – dentre aqueles que se associaram com eles. Veja bem, caro leitor, a completa inversão da lógica capitalista tradicional, em benefício dos setores monopolistas. Em qualquer país do mundo, taxa-se o estrangeiro como forma de impedir que ele faça o que quiser com o mercado interno. Aqui estamos isentando o estrangeiro para que ele possa moldar o mercado à sua imagem e semelhança. Vamos a alguns números que comprovam a nossa tese.
Entre 2005 e 2007 (últimos dados que a Ancine disponibiliza), foram lançados 192 filmes nacionais. O público desses filmes foi de cerca de 30 milhões de espectadores. Apenas 36 deles levaram mais de 100 mil pessoas ao cinema. Só 3 deles não receberam dinheiro via artigo terceiro. Dois são da Globo Filmes que, quando realiza a produção é impedida de captar incentivos fiscais. A única exceção verdadeira (O Cheiro do Ralo, com 172 mil espectadores), só serve para confirmar a regra. São 36 filmes (18,75% do total) que concentram 90% do público. Ou seja, ocupam toda a cota de tela reservada ao cinema brasileiro, apesar de serem filmes produzidos por estrangeiros. Mas façamos a conta de outro modo.
Das 9 maiores bilheterias de filmes brasileiros em 2007, 8 foram bancadas pelo artigo terceiro. A única exceção foi um filme da Globo (A Grande Família). Concentram 83,36% dos espectadores, enquanto os demais se contentam com o resto. Em 2006 o quadro é o mesmo. A única diferença é que a concentração é ainda maior: 87,75% para os 10 maiores e o resto para os demais 60 filmes lançados. Em 2005 todos os 10 filmes de maior bilheteria são filhos do artigo terceiro, detendo 93,11% do público. E nem é preciso dizer que, em 27 das 30 maiores bilheterias desses três anos, a distribuidora era uma empresa multinacional.
Em resumo: às majors norte-americanas, que antes eram obrigadas a tolerar cerca de 10% de filmes que não eram delas nos cinemas do país, foi dado o direito de utilizar o nosso dinheiro para ficarem sócias de filmes brasileiros. Passaram a ter o direito de decidir quais filmes ocuparão a cota de tela. A pré-condição para isso, claro, é dar-lhes sociedade e serem distribuídos por elas. O resultado é que o espaço para a cinematografia realmente independente reduziu-se ainda mais. Os cineastas nacionais só podem sonhar em chegar de verdade às telas caso se submetam – sabe-se lá a que custo – a um casamento forçado com seu principal inimigo. Se durante muitos anos o cinema nacional careceu de uma estratégia de desenvolvimento, não teve uma verdadeira política, agora tem. O único problema é que ela é estabelecida nos EUA, pela Sony, Fox, Warner, Buena Vista, Paramount e Universal, em benefício delas mesmas e em detrimento da cultura nacional.
TERCEIRO ATO: O Mercado é que decide
(Ou: o tiro de misericórdia)
A vida já estava bastante boa para o cartel do “entertainment”: dominavam, sem contestação das autoridades competentes, 90% do mercado cinematográfico. Os restantes 10% também eram ocupados principalmente por eles, co-produzindo filmes com o dinheiro dos outros (ou seja, com o dinheiro do povo brasileiro). O que mais eles poderiam querer? Eliminar os intermediários. Esse pessoal do Minc e da Ancine, apesar de seu capachismo à toda prova, gosta de posar de defensor do cinema nacional. Assim sendo, acaba deixando que se façam filmes sem o aval das majors. É bem verdade que não vão passar em lugar nenhum, que ninguém vai vê-los. Mas depois os diretores ficam reclamando, mendigando uma telinha, fazendo escândalo na imprensa. O jeito seria transferir ao cartel o direito de decidir diretamente o filme que será feito ou não. Inclusive decidindo onde o governo vai colocar o seu próprio dinheiro.
O leitor irá concordar que isso já seria demais. Pena que o pessoal do Minc e da Ancine não achou. Gostou da idéia e já começou a colocá-la em prática (em nome, é claro, da transparência e da democracia). Desde 2008 a Ancine passou a contar com o Fundo Setorial do Audiovisual, criado para ser o principal mecanismo de financiamento da indústria cinematográfica brasileira. Mas como decidir para onde vai a grana? Vamos a mais um exemplo concreto, para que o leitor não ache que nossa imaginação é fértil demais.
No primeiro concurso aberto pelo FSA, inscreveram-se 217 incautos. Desses, 102 foram desclassificados, perdidos nos meandros da burocracia cultural. Sobraram 115, que concorrerão a 30 vagas e R$ 15 milhões. Os felizardos serão escolhidos após uma análise, que determinará o número de pontos do projeto. Vejamos alguns dos critérios. “Interesse e adequação da proposta ao público”: ou seja, não interessa se o artista tem algo de interessante a dizer, interessa é se o público quer ouvir. Mas como saber de antemão o que o público quer? “Desempenho comercial das obras produzidas”: isto é, já fez sucesso antes? “Valores auferidos em negociações internacionais” / “experiência da distribuidora”: quer dizer, já tem contrato de distribuição com alguma multi? “Capacidade dos integrantes da equipe principal e do elenco principal”: em outras palavras, tem gente da Globo no meio? É fácil para o leitor dar-se conta de quem são os maiores interessados em estabelecer critérios bizarros como esses: filmes fáceis, que não façam pensar, com nomes consagrados e contratos de distribuição com as majors. É óbvio que são elas mesmas.
Mas, para o monopólio ainda não basta. Desta forma, resolveram também entrar na comissão de seleção. Foram contratados pela Ancine 18 consultores. Uma comissão formada por um consultor da Ancine, um funcionário da Finep (gestora do FSA) e dois consultores decidirá a pontuação dos filmes. Dos 18, sete são exibidores e dois são diretamente ligados às distribuidoras. Só não há distribuidores porque eles não poderiam julgar os filmes dos quais são sócios. O Presidente da Ancine, todo pimpão, afirma que tais mecanismos visam “reintroduzir o compromisso com o risco na atividade”. Risco de quê, Mané? Só se for risco de ver o cinema brasileiro afunda de vez, de ter a cota de tela invadida por baboseiras, de encher ainda mais as burras do cartel da indústria cultural norte-americana (deixando algumas migalhas para seus asseclas locais). Para as múltis acabou o risco de ter um filme que não seja de seu agrado nas salas brasileiras.
Resumo da ópera: não satisfeitos em usar livremente o que deveriam pagar de impostos para ocupar o que restava de mercado ao cinema nacional, ainda garantem que os outros filmes não chegarão nem a ser feitos. Só falta agora ocuparem as comissões de seleção de projetos da Petrobras, da Eletrobrás, do BNDES, pois no Minc e na Ancine já estão mandando.
EPÍLOGO: O sucesso deles é o nosso fracasso
(Ou: com o dinheiro dos outros é mais gostoso...)
Bem, perguntará o leitor, ficou comprovado que quem está mandando no cinema brasileiro fala inglês. Mas o que tem a ver com isso o simpático filme de Daniel Filho? Tudo. Dissemos antes que as produções da Globo Filmes eram exceções no uso do artigo terceiro. Mas a turma já deu um jeitinho da se arrumar com o pessoal do Jardim Botânico.
O filme não é produção da Globo, apesar de elenco, diretor e equipe trazerem o símbolo da emissora tatuado na testa, mas da Total Entertainment e da empresa do diretor. Assim pode entregar tranqüilamente sua distribuição à Fox Filmes do Brasil e pegar uma graninha do artigo terceiro. A Globo também tira sua casquinha, como co-produtora, fazendo a divulgação e o merchandising. E, para ninguém ter de meter a mão no seu próprio bolso, o filme conta com o generoso patrocínio (público) do BNDES. No final o diretor leva a fama de competente, que leva muita gente ao cinema, os demais são considerados apoiadores do cinema brasileiro, e todos enchem o bolso com o nosso dinheiro. Nessa brincadeira, como a bilheteria do filme já ultrapassou os R$ 50 milhões, a Fox deve ter embolsado mais ou menos R$ 10 milhões, sobre os quais deveria pagar R$ 2,5 milhões de impostos, mas generosamente destinará R$ 1,75 milhões ao cinema nacional... e começa tudo de novo.
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