domingo, 14 de fevereiro de 2010

A privatização do Carnaval Popular



A cada ano que passa o carnaval vai ficando mais elitista




Sem querer estragar a festa e nem botar água no chopp de ninguém, não posso deixar de abordar o que acontece, agora de forma avassaladora e cruel, no Rio e Janeiro (não só no Rio), com a tentativa de renascimento do Carnaval Popular de rua, que andou muito adormecido durante algum tempo, mas que foi reerguido à custa de pequenas articulações para a formação de Blocos de Rua. Trata-se de clara reação à ideologia do Carnaval "indoor" (em clubes) ou eventos de grande magnitude como o Desfile das Escolas no Sambódromo.

Ainda na década de 70 (o viço da juventude suplantava até os tempos pesados da ditadura militar), eu participava da formação de um pequeno bloco de rua, em Copacabana, com o nome Charme da Simpatia. Mais ao final desta década de 70, lembro-me de ter participado de uma pequena concentração na subida do Cristo Redentor, em um recuo da pista, que deu origem ao Bloco Sovaco do Cristo. Na emblemática Rua General Glicério, no bairro de Laranjeiras, sempre houve uma movimentação local de ocupação da Praça Comunitária de lá. O Bloco das Carmelitas, no Bairro de Santa Tereza, e o Comuna Que o Pariu (da juventude comunista do PCB, que sai na Cinelândia) veio no bojo destas iniciativas descentralizadas e comunitárias, para um retorno ao Carnaval de rua e popular.

O próprio Bloco do Barbas, organizado pelo Nelson Rodrigues Filho (filho do teatrólogo Nelson Rodrigues), fez parte daquele ressurgimento de um Carnaval não identificado com as empresas, com o lucro comercial e "de marcas" ("merchandising"). Além de centenas de experiências comunitárias e de pequeno vulto, tradicionais dos subúrbios cariocas, os quais freqüentei desde criança.

Assim, ao lado de experiências emblemáticas, porém já de vulto, de que a Banda de Ipanema é a maior expressão, o Carnaval do Rio na década de 90 e início do século 21 tinha uma série de eventos de rua realmente populares, organizados e financiados comunitariamente, que passaram a chamar a atenção e aumentar o número de foliões, denotando a liberdade tão encarnada pelo carnaval, que marcava posição no Rio, tal e qual a percussão dos bumbos e surdos das escolas de samba marcam a sua presença, anunciando os sambas enredos.

Desta forma, recuperaram-se as composições de marchinhas e sambas dos blocos, com a forte tradição carioca da crítica política e dos costumes, trazendo o Carnaval para reencontrar as suas melhores tradições populares.

Mas, "O Tempo Passou ô ô / E no terreirão da casa Grande / Negro diz tudo o que pode dizer..." (famoso samba enredo da Portela em 73) . Porém, sob a vigilância dos senhores de engenho, como sabemos.

Assim, estes eventos populares reconstruídos, sob uma ideologia não comercial e mais comunitária, se multiplicaram e passaram a ser alvo, a partir da gestão conservadora de Cesar Maia, do que hoje conhecemos como Choque de Ordem (aliás, César Maia já usava este nome), além da institucionalização de espaços públicos, através de patrocínios licitados, como foi o Terreirão do Samba no Centro do Rio.

Os famosos ensaios das Escolas de Samba, em seus espaços próprios, já vinham sendo patrocinados, em geral por cervejarias, colando o "merchandising" nesta ou naquela escola, expropriando, a meu ver, a espontaneidade destas, que sempre foram financiadas pela contravenção do jogo do bicho, mas ao menos sem marcas registradas e expostas junto aos seus estandartes.

Inicia-se, então, um processo de "organização da bagunça", com uma série de regras e tal, como se fosse a preparação para o surgimento "salvador" de empresas que passaram a concorrer em licitações, vejam só, para "patrocinar" o Carnaval de Rua – que foi constituído sem precisar de patrocínio algum, ou marca nenhuma exposta em suas camisetas.

Passado alguns anos desta privatização e corporativização do Carnaval de Rua, com seus blocos populares, chegamos neste 2010, onde a experiência, a meu ver, chega em seu auge.

Os blocos só podem sair se estiverem inscritos na prefeitura e, por conseguinte, "abraçados" pela empresa (cervejaria) que "gratuitamente" distribui suas camisetas emblemáticas e põe sua marca em claro "merchandising", por toda a extensão do Bloco, desde o carro abre alas ao último estandarte. Em troca, distribuem pelo trajeto os tais "banheiros químicos", que a prefeitura, em vez de bancar (afinal, é para isso que existe prefeitura, né?), coloca na licitação, para ficar a cargo das empresas ganhadoras, aliás, da empresa ganhadora.

Depois, pelo crescimento dos blocos, em vez de se criarem muitos outros comunitariamente, deixando os grandes blocos a cargo dos mais tradicionais, os problemas urbanos se sucedem e avultam, com grave dicotomia entre os interesses dos moradores por onde passam e o povo em alegres farândulas. O Rio, com a corporativização financeira do carnaval de rua, começa a sofrer algo já usual em Salvador (Bahia), que são as "áreas Vips" - e bem pagas - em lugares privilegiados no bloco (o tradicional Cordão do Bola Preta acaba de fazer isso), estratificando assim foliões de primeira e segunda categoria (e quem sabe terceira).

A uniformização dos blocos com as camisetas iguais que expõem a marca patrocinadora é outro problema que avacalha o visual plural do carnaval. O Rio este ano é uma grande Onda Azul, cor de conhecida marca de cerveja que anuncia seu produto expondo mulheres como carne de tendal, para deleite da masculinidade trôpega dos machões brasileiros, e para deleite dos que vêem o Carnaval como oportunidade para o sexo comercial (nada contra, moralmente falando, mas esta ideologia atinge jovens de tenra idade, notadamente as nossas brejeiras adolescentes).

Como pano de fundo, e em contraste ao Carnaval da zona sul carioca, persistem experiências comunitárias nos subúrbios do Rio, onde desfrutarei um ou dois blocos verdadeiros e não patrocinados, que sem dinheiro algum e nem propaganda na TV fazem o melhor do carnaval carioca.


Evoé Momo!




Raymundo Araujo Filho






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