Em seu terceiro longa, "Pachamama", o diretor carioca Eryk Rocha atravessa a tríplice fronteira entre o Brasil, o Peru e a Bolívia, no Acre, para realizar um documentário em que investiga a ebulição que atinge os povos indígenas na América do Sul, especialmente na Bolívia, sob a presidência de Evo Morales.
O filme, que estreia em São Paulo e no Rio de Janeiro, foi viabilizado como um projeto para a TV, que rendeu também uma minissérie já exibida no Canal Brasil e a ser mostrada também no Canal Futura. Em abril, "Pachamama" será lançado no cinema em La Paz.
Filho do lendário Glauber Rocha ("Deus e o Diabo na Terra do Sol"), cuja memória explorou em seu filme de estreia, "Rocha que Voa" (2002), Eryk herda do pai esta preocupação com uma identidade latino-americana que atravessa fronteiras. Mas assume um ponto de vista bem diferente, com registro temporal atualizado, ao focar a retomada da cultura ancestral por parte dos quéchuas, aymaras e outros povos nativos.
Fazendo ele mesmo a câmera do filme, Eryk toma o pulso de uma inquietação que vem tomando as nações de maioria indígena da América do Sul, a partir da chegada ao poder do boliviano Morales -- o primeiro presidente indígena do continente, eleito em 2005 e reeleito em 2009.
O cineasta anda no meio da rua, entra em discussões espontâneas, em que surgem as mais diversas teses. Um homem defende a volta a uma nação aymara original, hoje dividida entre Peru, Bolívia e Argentina, e acha inevitável o derramamento de sangue. Outros discordam. De todo modo, a reavaliação da herança indígena que resistiu à colonização de espanhois e portugueses está na ordem do dia.
Filmando em meados de 2007, Eryk acompanha parte das grandes manifestações e assembleias para debate sobre novas formas de organização e divisão comunitárias da terra, bem como a nacionalizações de alguns setores, temas candentes da Bolívia sob Morales. Flagra também um momento de crise em Santa Cruz, província que luta historicamente para emancipar-se da Bolívia -- e cujo representante, numa entrevista, elogia para o cineasta o que encara como a pouca disposição agressiva dos brasileiros para resolver seus conflitos, preferindo o "jeitinho".
Louro e de olhos claros, Eryk tem que lidar também com a desconfiança que desperta entre as pessoas, que o confundem com um "gringo" (norte-americano) ou jornalista -- categoria que também desperta a desconfiança de muitos, devido ao viés crítico que enxergam na maioria das reportagens, especialmente de televisão, ao retratarem a movimentação popular.
Não falta também a exposição de uma das teses internacionalmente mais polêmicas de Morales -- um ex-cocalero que defende o tradicional consumo das folhas de coca pelos indígenas contra o cansaço e a fome. "Não vejo porque a coca seja ilegal para os índios e legal apenas para a Coca-Cola", costuma dizer.
Umas das sequências mais impressionantes é a visita a Potosí que, no período da colonização espanhola, chegou a ser a maior mina de prata do mundo. Hoje com uma produção apenas residual, a mina é um cenário fantasmagórico, em que os mineiros mantêm bonecos de entidades mágicas para espantar o maior fantasma local -- o risco de morte. Segundo autores como o escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor do clássico livro "As Veias Abertas da América Latina", oito milhões de mineiros teriam morrido ali desde o século XVI.
Proporcionalmente, o Brasil ocupa pouco espaço no filme, ao contrário do que acontece na série. O único país falante de português do continente, entretanto, é mencionado às vezes, seja de maneira realista ou equivocada. Num dado momento, alguém diz que o Brasil tem "70% de analfabetos", um número absurdo. Quase sempre, o Brasil é lembrado como o vizinho maior e mais rico.
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