sábado, 26 de março de 2011

Com criatividade e inovação, música argentina se engajou na luta contra a ditadura

Pra quem acha que a música argentina é só Carlos Gardel



A partir do golpe que tirou María Estela Martínez de Perón do poder em março de 1976, os militares tomaram o controle do país com um plano denominado “Processo de Reorganização Nacional”. Não demorou para que implementassem novas normas de conduta e de restrições de acesso à música e à literatura, principalmente as que garantiam não se identificar ou exaltar os “valores argentinos”. 


A história se repetiu em diferentes países da América Latina. Na Argentina, o período de repressão resultou em um saldo estimado de 30 mil mortos e desaparecidos. Ainda assim, muitos músicos, mesmo estando nas “listas negras” da censura, conseguiram fazer que seus versos de resistência fossem escutados. Burlas nas restrições, versos camuflados e exílio foram alguns dos artifícios utilizados para impedir o fim do registro musical da época. 



Com a retomada da democracia e a volta de muitos deles, as obras que não puderam resistir à imposição do silêncio nos anos de chumbo vieram à tona. Nos últimos anos, muitos deles continuaram compondo músicas que fazem alusão ao período, colaborando com o resgate da memória daqueles anos. 



Em 2009, o Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer), divulgou um documento com uma lista borrada, embora legível, das músicas censuradas entre os anos de 1978 e 1983. Os nomes que integram a “lista negra” vão desde artistas populares argentinos a sucessos internacionais, como John Lennon, Eric Clapton (Cocaine), Queen e Pink Floyd (The Wall). 



Roberto Carlos 



Até mesmo canções do brasileiro Roberto Carlos figuravam na lista de proibições, sob o título de “não aptas para serem difundidas pelo serviço de rádiodifusão”. Canções como O seu corpo e Imoral, ilegal ou engorda e Os seus botões, compostas com Erasmo Carlos, viraram alvo dos censores e não podiam ser tocadas. 



Café da manhã, ou Desayuno, provavelmente não agradava os militares pelos versos “pensando bem/ amanhã eu nem vou trabalhar/ e além do mais/ temos tantas razões pra ficar”, que em espanhol terminaram traduzidos para: “pensando bem/ amanhã eu não vou trabalhar/ e além do mais/ não há razão que me vá obrigar”. 



Artistas de prosa mais revolucionária foram perseguidos, situação vivida pelos compositores argentinos Armando Tejada Gómez e César Isella, que em Triunfo Agrário conclamavam que “é preciso virar a mesa/ quem não muda tudo/ não muda nada”. No listado da censura, as autoridades proíbem músicas de emblemáticos artistas argentinos, como León Gieco, Charly García, Mercedes Sosa e Luis Alberto Spinetta. 




 
Gieco em 2005, em uma apresentação na Casa Rosada 



O rock, gênero jovem, expressão de conotação sexual mais liberada, que fomenta rebeldia às normas, ao sistema e, em alguns casos, com menções a drogas e ao hippismo, teve que se camuflar para coexistir com o regime. Os militares viam no gênero um perigo ao ideal familiar tradicional católico. 



Charly García 



A dupla Sui Géneris, formada por Charly García e Nito Mestre em 1967, se separou em 1974, quando ambos decidiram “viver mais, e não tentar sobreviver”. Pequeñas anécdotas sobre las instituciones, com referências contra o regime, foi duramente proibido. Charly declarou em entrevistas que o LP “foi destroçado pela censura”. “Mesmo hoje, em democracia, tente fazer uma canção contra a igreja. As pessoas podem ficar muito nervosas”, garantiu. 



O cantor, no entanto, não se calou. Com uma nova banda La Máquina de Hacer Pájaros, denunciou a “paranóia na cidade” gerada com as notícias de desaparecidos e torturas, “você cobre o seu cabelo e sua cara tão bem/ como se tivesse frio/ mas na verdade você quer escapar/ de alguma confusão”. 



Suas canções com críticas mais explícitas à ditadura, como No bombardeen Buenos Aires e Nos siguen pegando abajo foram censuradas. Uma canção com sua nova banda, Serú Girán, um dos maiores destaques argentinos do rock dos anos 1980, utiliza o conto Alice através do espelho, de Lewis Carroll, como “desabafo”: “Não conte o que tem atrás daquele espelho/ você não terá advogados nem testemunhas/ acenda os candis que os bruxos/ pensam em voltar/ para nublar nosso caminho”. Censurada. 



Até mesmo conteúdos mais inocentes, como composições de Palito Ortega, entraram na mira da censura. No final dos anos 1970, a maioria dos artistas resistentes ao regime havia saído do país. Os shows não chegaram a ser proibidos, mas era normal que o público se deparasse com um policiamento violento ao sair dos estádios. 



No livro Música y Dictadura – Por qué cantábamos, os autores Laura Santos, Alejandro Petrucelli e Pablo Morgade revelam que os cantores populares se sentiam mais perseguidos que os roqueiros. No lançamento da obra, em 2008, os autores contaram que o presidente da Comfer na ditadura, o ex-general Rodolfo Feroglio, continuava mantendo a versão de que não houve censura, mesmo diante de resoluções de veto assinadas por ele. 



Perseguição 



Um exemplo da violência nos métodos de censura foi o sequestro e posterior assassinato do pianista Miguel Ángel Estrella em Motevidéu, no ano de 1977, a mando de militares argentinos. O crime? Realizar apresentações gratuitas de música clássica para camponeses de Tucumán. O artista passou por uma sessão de tortura, em que, com uma serra elétrica, lhe ameaçavam cortar as mãos. 



Outra vítima das perseguições foi o cantor e compositor portenho Victor Heredia, que em seu discoAquellos soldaditos de plomo, de 1983, incluiu uma canção que virou um dos hinos da resistência. “Ainda cantamos, ainda pedimos/ ainda sonhamos, ainda esperamos/ apesar dos golpes/ que desferiu em nossas vidas/ o engenho do ódio/ desterrando ao esquecimento/ nossos seres queridos”. Em uma busca constante de sua irmã e seu cunhado desaparecidos, que engrossam a lista dos 30 mil desaparecidos, ele foi um dos artistas que permaneceram no país durante o regime militar. 



Em 1978, León Gieco compôs sua música mais famosa Sólo le pido a Dios, interpretada em 1986 pela cantora Beth Carvalho. Mensagem de versos pacifistas contra a guerra (“é um monstro grande e pisa forte/ em toda a pobre inocência das pessoas”), a música é a escolhida por Gieco para o desfecho de todos os seus shows. 



Retorno 



Em 1983, a volta dos exilados foi incentivada pelo enfraquecimento do regime. O abrandamento da repressão permitiu que novas manifestações acerca de tudo o que tinha se desenrolado começassem a emergir. Uma delas, composta pelo grupo Twist, Pensé que se trataban de cieguitos, explicita a dinâmica dos desaparecimentos, muitas vezes injustificados. A música narra em primeira pessoa a história de um jovem que, em um sábado à noite de calor, decide ir ao cinema e termina preso. 



Já a banda Fabulosos Cadillacs incorporou no repertório do disco El León, de 1992, a músicaDesapariciones, de 1984, composta pelo panamenho Rubén Blades, ferrenho crítico dos regimes repressores instaurados na América Latina no último século. 



Já em 1998, o grupo de rock Bersuit Vergarabat compôs a música Vuelos (já meus olhos são barro/ na inundação/ que cresce, decresce/ aparece e se vai), em homenagem ao jornalista Horacio Verbistky, autor do livro El Vuelo, uma investigação sobre os chamados “vôos da morte” (em que prisioneiros eram atirados ao mar de um avião) e sobre a cumplicidade da igreja católica com a ditadura. 






O documento publicado pelo Comfer contém quase 200 músicas, listadas em sete páginas. Muitas delas, hoje são grandes sucessos no país, o que prova a alta capacidade de resistência de sua cultura, inspirada, basicamente, na necessidade de liberdade. 




Nota do Blog

Ouçam também as duas bandas argentinas abaixo, além de politizadas, fazem um ótimo som:

Carajo - El Error



ver-s



Todos Tus Muertos "Mate"














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