Dilma: a tortura julgada, a anistia sangrada
Luiz Cláudio Cunha *
Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita presidente, deve encarar um
desafio que intimidou os cinco homens que a antecederam no Palácio do
Planalto a partir de 1985, quando acabou a ditadura: a tortura e a
impunidade aos torturadores do golpe de 1964.
José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, FHC e Lula nunca tiveram
a cara e a coragem de botar o dedo na ferida da impunidade, chancelada
pela medrosa decisão de abril passado do Supremo Tribunal Federal, que
reafirmou o perdão aos militares e policiais que mataram e torturaram
presos políticos. Na quarta-feira passada (4), quando o país ainda
vivia a ressaca da vitória no domingo da primeira ex-guerrilheira
chegar ao poder supremo da Nação, o incansável Ministério Público
Federal em São Paulo (MPF-SP) ajuizou ação civil pública pedindo a
declaração da responsabilidade civil de quatro militares reformados
(três oficiais das Forças Armadas e um da PM paulista) sobre mortes ou
desaparecimento forçado de seis pessoas e a tortura de outras 20
detidas em 1970 pela Operação Bandeirante (Oban), o berço de dor e
sangue do DOI-CODI, a sigla maldita que marcou o regime e assombrou os
brasileiros.
Dilma Vana Rousseff, codinome ‘Estela’, uma das lideranças da
Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), empresta sua
voz e seu drama nessa ação para acusar o capitão do Exército Maurício
Lopes Lima, responsável pela pancadaria na futura presidente e em
outros 15 militantes políticos. Presa na capital paulista numa tarde
de janeiro de 1970, Dilma foi levada para a Oban da rua Tutóia, onde
cinco anos depois morreria o jornalista Vladimir Herzog. Sobreviveu a
22 dias de intensa tortura, como contaria em 2003 num raro desabafo ao
repórter Luiz Macklouf Carvalho:
“Levei muita palmatória, me botaram no pau-de-arara, me deram choque,
muito choque. Comecei a ter hemorragia, mas eu aguentei. Não disse nem
onde morava. Um dia, tive uma hemorragia muito grande, hemorragia
mesmo, como menstruação. Tiveram que me levar para o Hospital Central
do Exército. Lá encontrei uma menina da ALN (Ação Libertadora
Nacional): ‘Pula um pouco no quarto para a hemorragia não parar e você
não ter que voltar pra Oban’, me aconselhou ela”.
O relato formal, revelado pelo projeto Brasil Nunca Mais da
Arquidiocese de São Paulo, está transcrito nas páginas 30 e 31 do
processo 366/70 da Auditoria Militar. Revela-se já nos autos o
temperamento forte de Dilma, então com 22 anos, logo após ser
transferida para o presídio Tiradentes e ali mesmo ameaçada de um
retorno ao inferno: “...na semana passada, dois elementos da equipe
chefiada pelo capitão Maurício compareceram ao presídio e ameaçaram a
interroganda de novas sevícias...”, denunciou a presa. Dilma contou na
Justiça Militar que perguntou aos emissários da Oban se eles estavam
autorizados pelo Poder Judiciário. A resposta do militar resumia o
deboche daqueles tempos: “Você vai ver o que é o juiz lá na Oban!...”
Hoje tenente-coronel reformado, Maurício defendeu-se no jornal O
Estado de S.Paulo: “Ela esteve comigo somente um dia e eu não a
agredi, em momento algum”. A ação do MPF, subscrita pelo procurador
regional Marlon Weichert e outros cinco procuradores, cita dois casos
notórios entre os seis mortos: Virgílio Gomes da Silva, codinome
‘Jonas’, o líder do grupo que sequestrou o embaixador americano Burke
Elbrick (integrado também por Franklin Martins e Fernando Gabeira), e
Frei Tito, o dominicano preso pelo delegado Sérgio Fleury e que,
transtornado pela tortura, acabou se enforcando meses depois num
convento na França. “Tortura é crime contra a humanidade,
imprescritível, tanto no campo cível como no penal”, dizem os
procuradores que subscrevem a ação.
Apenas dois dos nove ministros do STF - Ricardo Lewandowski e Carlos
Ayres Brito - concordaram com a ação da OAB, que contestava a anistia
aos agentes da repressão. “Um torturador não comete crime político”,
justificou Ayres Brito. “Um torturador é um monstro, um desnaturado,
um tarado. Um torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos
prazeres diante do mais intenso sofrimento alheio perpetrado por ele.
É uma espécie de cascavel de ferocidade tal que morde ao som dos
próprios chocalhos. Não se pode ter condescendência com o torturador.
A humanidade tem o dever de odiar seus ofensores porque o perdão
coletivo é falta de memória e de vergonha”.
Apesar da veemência de Ayres Brito, o relator da ação contra a
anistia, ministro Eros Grau, ele mesmo um ex-comunista preso e
torturado no DOI-CODI paulista, manteve sua posição contrária: “A ação
proposta pela OAB fere acordo histórico que permeou a luta por uma
anistia ampla, geral e irrestrita”. Grau deve estar esquecido ou
desinformado, algo imperdoável para quem é juiz da Suprema Corte e
também sobrevivente da tortura. A anistia de 1979 não é produto de um
consenso nacional. É uma lei gestada pela ordem vigente, blindada para
proteger seus agentes e desenhada de cima para baixo para ser
aprovada, sem contestações ou ameaças, pela confortável maioria
parlamentar que o governo do general João Figueiredo tinha no
Congresso: 221 votos da ARENA, a legenda da ditadura, contra 186 do
MDB, o partido da oposição. Nada podia dar errado, muito menos a
anistia controlada.
Amplo e irrestrito, como devia saber o ministro Grau, era o perdão
indulgente que o regime autoconcedeu aos agentes dos seus órgãos de
segurança. Durante semanas, o núcleo duro do Planalto de Figueiredo
lapidou as 18 palavras do parágrafo 1° do Art. 1° da lei que abençoava
todos os que cometeram “crimes políticos ou conexos com estes” e que
não foram condenados. Assim, espertamente, decidiu-se que abusos de
repressão eram “conexos” e, se um carcereiro do DOI-CODI fosse acusado
de torturar um preso, ele poderia replicar que cometera um ato conexo
a um crime político. Assim, numa penada só, anistiava-se o torturado e
o torturador.
A discussão do texto começou numa comissão mista do Congresso onde a
ARENA tinha 13 das 20 cadeiras. Tateava-se com tanto cuidado que a
oposição conseguiu que parentes de desaparecidos pudessem requerer do
Estado apenas uma “declaração de ausência da pessoa”, já que resgatar
o cadáver era algo impensável. Até que, em 22 de agosto de 1979, numa
sessão com nove horas de debate, o Governo Figueiredo aprovou sua
anistia, a 48ª da história brasileira. Com a decisão, três dezenas de
presos políticos do país encerraram a greve de fome de 32 dias que
pedia exatamente uma anistia ampla, geral e irrestrita, apesar da
credulidade do ministro Grau.
Com a pressão da ditadura, aprovou-se uma lei que não era ampla (não
beneficiava os chamados ‘terroristas’ presos), nem geral (fazia
distinção entre os crimes perdoados) e nem irrestrita (não devolvia
aos punidos os cargos e patentes perdidos). Mesmo assim, o regime suou
frio: ganhou na Câmara dos Deputados por apenas 206 votos contra 201,
graças à deserção de 15 arenistas que se juntaram à oposição para
tentar uma anistia mais ampliada. Se o Governo perdesse ali, ainda
teria o colchão dócil do Senado, onde o MDB dispunha de apenas 25
senadores contra 41 da ARENA – dos quais 21 eram biônicos,
parlamentares sem voto popular, mas absolutamente confiáveis,
instalados ali pelo filtro militar do Planalto.
Não passa de mistificação ou simples má-fé, portanto, dizer que a
anistia de 1979 é produto de um consenso nacional, placidamente
discutido entre o regime e a sociedade. A oposição, na verdade,
aceitou os anéis para não perder os dedos, já que até uma anistia
controlada era melhor do que nada. Líderes históricos como Arraes,
Brizola e Prestes puderam voltar, mas o governo continuava insistindo
na tese do perigo ‘terrorista’. O fato real é que o único terrorismo
que ainda vigorava no país era o do próprio Estado, que se dizia de
‘segurança nacional’. Bancas de jornal, publicações alternativas de
oposição e siglas combativas da sociedade, como a OAB e a ABI, eram
vítimas de bombas terroristas — e elas, com certeza, não vinham da
esquerda.
Um dos mentores do ‘crime conexo’ e signatário da anistia de agosto
de 1979 era o chefe do Serviço Nacional de Informações, o finado SNI,
general Octávio Aguiar de Medeiros. Menos de dois anos depois, em
abril de 1981, um Puma explodiu antes da hora no Riocentro, no Rio de
Janeiro. Tinha a bordo dois agentes terroristas do Exército: um
sargento que morreu com a bomba no colo e um capitão do DOI-CODI que
sobreviveu impune e virou professor do Colégio Militar em Brasília. Um
inquérito policial-militar do Exército apurou que o atentado foi
planejado pelo coronel Freddie Perdigão. Era o chefe da agência do SNI
do general Medeiros no Rio de Janeiro. Nada mais conexo do que isso.
Talvez o ex-preso político Eros Grau, agora ministro aposentado do
STF, não soubesse disso, mas o Brasil espera que a ex-presa política
Dilma Rousseff, prestes a assumir a presidência da República, tenha
plena consciência dessas circunstâncias. Ela tem, por experiência de
vida e de sangue, uma biografia que a diferencia bastante de seus
antecessores, absolutamente complacentes e omissos nas questões mais
candentes dos direitos humanos.
Fernando Henrique Cardoso, descendente de três gerações de generais e
respeitado sociólogo de origem marxista, esperou o último dia de seu
segundo mandato, em dezembro de 2002, para duplicar vergonhosamente os
prazos de sigilo dos documentos oficiais que podem jogar luz sobre a
história do país. Lula, um aclamado líder sindical que nasceu do
movimento operário mais consciente e mais atingido pelo autoritarismo,
sucedeu FHC na presidência, sob a natural expectativa de que iria
corrigir aquele ato de lesa-conhecimento de seu antecessor tucano. E o
que fez Lula? Nada, absolutamente nada para facilitar e agilizar o
acesso à historia contingenciada pelos 21 anos de regime militar.
O sociólogo e o metalúrgico, assim, nivelaram-se na submissa inércia
dos últimos 16 anos de governos tementes à eventual reação da caserna
e seus generais de pijama. Uma grossa bobagem, já que nem os
militares acreditam mais nesses fantasmas. Tanto que o site oficial do
Exército, na internet, lipoaspirou sua própria história, que nasce na
resistência ao invasor holandês em Guararapes, no século 17, passa
pela Independência e pela República, exalta o Duque de Caxias e Rondon
e desemboca nas duas Guerras Mundiais. Sumiu do portal a Intentona
Comunista, que reservava o 27 de novembro para a ode de sempre aos
mortos da sublevação de 1935, e evaporou-se toda a cantilena sobre 31
de março de 1964, santificada como a ‘Revolução Redentora’ pelos
defensores do golpe. Tudo isso é um bom sinal, e um alento para que
ninguém mais se acovarde diante dos desafios da história — como
fizeram FHC, Lula e o Supremo Tribunal Federal.
Na lente da história, o Exército pode ser visto pelo bem e pelo mal.
Em solo italiano, nos anos 1944-45, a brava Força Expedicionária
Brasileira (FEB) lutou pela liberdade na guerra contra o
nazi-fascismo, com 25 mil homens que fizeram 20 mil prisioneiros nas
tropas do III Reich.
Em solo brasileiro, na ditadura de 1964-85, o Exército e seus
companheiros de armas usaram uma força estimada de 24 mil agentes da
repressão que, na guerra contra a subversão, prenderam cerca de 50 mil
brasileiros, quase 20 mil deles sofrendo algum tipo de tortura. Alguns
não tiveram, como Dilma Rousseff, a ventura de sobreviver.
Na campanha antinazista da Itália, tombaram 463 brasileiros, entre
pracinhas e oficiais.
Na cruzada antisubversiva do Brasil, caíram 339 dissidentes, entre
mortos e desaparecidos, segundo o livro Direito à Memória e à Verdade,
divulgado pelo Palácio do Planalto em 2007.
Se a coragem não é suficiente, a ameaça de constrangimento pode ser um
alento decisivo para a presidente Dilma Rousseff encarar a questão da
tortura, na democracia, com a mesma bravura com que a enfrentou em
plena ditadura. Ao contrário do ministro Nelson Jobim, uma figura
submissa aos quartéis que inibia qualquer ação mais afirmativa de
Lula, Dilma terá ao seu lado o eleito governador gaúcho Tarso Genro,
que na condição de ministro da Justiça defendeu abertamente a punição
aos torturadores e a revisão da anistia para este tipo de crime, com
uma lógica clara como o sol: "No regime militar nenhuma norma, nem o
AI-5, permitia a tortura. Este delito não é político, é comum".
A desastrosa decisão da Suprema Corte brasileira, preservando a
anistia para os torturadores, foi qualificada na ONU como “muito
ruim”. A Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, a sul-africana
Navi Pillay, justificou: “Não queremos impunidade e sempre lutaremos
contra leis que proíbem investigações e punições”.
O espanhol Fernando Mariño Menendez, jurista do Comitê da ONU, foi
mais duro: “Isso é incrível, uma verdadeira afronta. Leis de anistia
foram tradicionalmente formuladas por aqueles que cometeram crimes,
seja qual for o lado. É um autoperdão que o século 21 não pode mais
aceitar”. O equatoriano Luís Gallegos Chiriboga, perito da ONU sobre
tortura, lembrou: “Há um consenso entre os órgãos da ONU de que não se
deve apoiar ou mesmo proteger leis de anistia. Com a decisão tomada
pelo Supremo Tribunal brasileiro, o País está indo na direção
contrária à tendência latino-americana de julgar seus torturadores e
contra o senso da ONU luta contra a impunidade”.
O STF pode sofrer uma grave humilhação internacional ainda este ano —
e isso pode ser o primeiro grande constrangimento externo do Governo
Dilma. Começou em maio, em San José da Costa Rica, o processo n°
11.552 de Júlia Gomes Lund contra o Brasil na Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Ela é mãe de Guilherme Lund, que desapareceu aos 26
anos, junto com outras 70 pessoas, no confronto das Forças Armadas
contra os guerrilheiros do PCdoB nas matas do Araguaia, no sul do
Pará. Em 2008, a Corte da OEA recomendou ao Brasil a punição aos
responsáveis pela prisão, tortura e morte no caso Lund. O Brasil não
reagiu e, no ano seguinte, foi aberto o processo contra o Estado
brasileiro.
A decisão mais provável da Corte, que não comporta apelação, aponta
para uma declaração constrangedora para o STF e para o Brasil até
dezembro próximo, definindo que a lei da anistia não abriga os crimes
de detenção, tortura, assassinato e desaparecimento dos guerrilheiros.
Se isso serve para o combate no coração da floresta, pode servir
também para os combatentes da guerrilha urbana que foram torturados no
centro da maior cidade brasileira.
Como no caso de uma certa ‘Estela’, uma das líderes do grupo
guerrilheiro VAR-Palmares. Com paradeiro certo e conhecido, a partir
de 1° de janeiro: Presidência da República Federativa do Brasil,
Palácio do Planalto, 3º andar, Praça dos Três Poderes, Brasília, DF,
CEP 70150-900.
Sua ocupante, Dilma Rousseff, pode abraçar esta causa com a força de
sua história e sua determinação.
Agora, basta a sangria da memória.
E uma hemorragia de verdade.
*Luiz Cláudio Cunha é jornalista.
cunha.luizclaudio@gmail.com
Esse assunto é por demais espinhoso para Dilma Rousseff. Não que ela não tenha a coragem de enfrentá-lo, porém se tiver que se posicionar sobre isso deverá fazê-lo de maneira a não parecer como vingança pessoal e sim como posição oficial do estado brasileiro. É claro que haverá pranto e ranger de dentes mas definitivamente aqueles que praticaram a tortura, contra a presidenta eleita o contra quem quer que seja, têm que enfrentar a justiça. Tem sido assim em todos os países onde houve ditadura e não pode ser diferente no Brasil, até como prevenção contra novas aventuras sombrias como aquela.
ResponderExcluirAssino embaixo teacher Ramos, temos que extirpar esse mal definitivamente do país esse mal.
ResponderExcluirAbs!
Espero em Dilma, mas do que passar a limpo os tempos da ditadura, espero que passe a limpo nossos erros na gestão do Brasil.
ResponderExcluirMensalão e outras questões "Nunca Mais".
Seu governo pode e deve resgatar a confianção em um partido político com a história de luta, conquistas e vida do Partido dos Trabalhadores.