O foco foi o projeto que ele apresentou recentemente na Câmar dos Deputados, em parceira com Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), propondo alterações na forma como são feitas as demarcações de terras indígenas.
De acordo com o PL 4791/2009, toda vez que o Executivo quiser demarcar alguma terra indígena, terá que submeter o projeto ao Congresso.
É uma proposta que provoca arrepios em organizações de apoio aos índios. Para elas, se a proposta de Aldo e Ibsen for aprovada, qualquer projeto de demarcação estará fadado ao fracasso, pois a banc ada ruralista, uma das mais poderosas do Congresso, tratará de barrá-lo.
Um dos lados mais curiosos dessa história é que o projeto aproxima o deputado de um partido comunista, com tradição socializante, de grupos conservadores, que contestam. Na entrevista abaixo, transcrita parcialmente na edição desta segunda-feira no Estado, o deputado explica suas razões.
Começa dizendo que os índios brasileiros nunca são ouvidos pelas autoridades nos processos de demarcação; que eles são baseados em laudos antropológicos nem sempre confiáveis e sob pressão de organizações não-governamentais que insistem em tutelar os índios e apontar o Estado como ameaça à sua cultura. No conjunto isso estimularia propostas secessionistas e põe em risco a integridade territorial do Brasil.
Aldo é alagoano e tem 53 anos. Começou sua carreira política no movimento estudantil e chegou a presidir a União Nacional dos Estudantes, na época de sua reconstruç ão, nos anos 80. Já foi eleito cinco vezes consecutivas para o cargo de deputado federal e é considerado um dos parlamentares mais influentes do Congresso. Também já ocupou as cadeiras de presidente da Câmara e de ministro da Articulação Política do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O que o levou a apresentar esse projeto, que transfere as demarcações do Executivo para o Legislativo?
O projeto não subtrai do Executivo a prerrogativa de demarcação das terras indígenas. Apenas obriga o Executivo a enviar a proposta de demarcação ao Congresso, que analisa, promove as discussões, as negociações necessárias com as partes envolvidas no processo demarcatório. E depois disso a proposta é devolvida ao Executivo, na forma original ou modificada. É uma instância de negociação voltada para todas as partes envolvidas e interessadas, incluindo os índios, que não são ouvidos no processo demarcatório - uma decisão unilateral da Funai (Fundação Nacional do Índio), que colhe o laudo - nem sempre rigoroso - de antropólogos e submete ao Ministério da Justiça, que prepara o decreto de demarcação e encaminha ao presidente da República, que homologa. O projeto democratiza o processo de demarcação.
O senhor está mesmo dizendo que o governo não ouve os índios?
Não ouve. O caso da Raposa Serra do Sol é patente. Ali, um grupo grande de indígenas contestou a demarcação proposta pela Funai. No entanto não foi levado em conta.
A maioria dos índios era favorável à demarcação em área contínua.
Não creio. Pelo que apurei, em visitas àquela região, não havia maioria favorável. A relação entre os grupos de índios que vivem ali não é das mais amistosas e eles preferiam que a demarcação fosse em ilhas, onde cada tribo teria sua área demarcada, sem precisar conviver co m outras. Isso não seria apenas por conta de rivalidades. Isso também levava em conta as diferenças no estágio de evolução de cada grupo. Em Roraima existem indígenas que estão num estágio ainda próximo da coleta, da caça, e outros que são formados por pequenos fazendeiros, comerciantes. É o caso dos macuxis.
Essa ausência de consulta aos índios foi específica do processo de Roraima? Ou ocorre também em outras processos?
Em todos os processos. No caso da Raposa Serra do Sol, o ministro que assinou o decreto de demarcação das terras, no governo de Fernando Henrique, sequer foi a Roraima. Não esteve lá nem uma vez. Ele assinou um decreto, impôs uma decisão a uma comunidade formada por índios e não-índios e, no fim das contas, ninguém foi ouvido.
O senhor falou que os laudos antropológicos que norteiam as demarcações nem sempre são rigorosos.
Ainda usando o exemplo da Raposa Serra do Sol, o laudo que deu origem àquela terra indígena é eivado de fraudes. As mais diversas. Há fraude no censo que contabilizou a população indígena, na coleta de testemunhas, na contabilidade das malocas usadas como referência para a demarcação. Malocas localizadas na Guiana foram contabilizadas como se estivessem no Brasil. Com isso você amplia a extensão da área a ser demarcada. Houve também a redistribuição dos índios: você encontra os índios concentrados num lugar e os subdivide por várias regiões, para poder ampliar a área demarcada. Tudo isso foi apurado e demonstra que é preciso uma autoridade que faça a mediação, a apuração, para que não se cometa injustiças.
Falando em mediação, acha que os arrozeiros poderiam ter ficado na terra indígena?
Mas é evidente que sim. Já vi de tudo na vida. Já vi entrarem numa propriedade para desapropriá-la e trocá-la de mãos, como faz o socialismo , como fez Fidel Castro em Cuba. Ele pegou aquelas usinas, aqueles canaviais e mudou de propriedade. Mas destruir, imobilizar a capacidade produtiva, isso eu nunca vi. A área de arroz era insignificante em relação ao conjunto territorial da Raposa Serra do Sol e constituía uma atividade econômica importante naquele Estado.
Em Roraima a classe média depende do emprego público e os pobres dependem da Bolsa-Família. Mais da metade da população de Boa Vista está no Bolsa-Família. Você não tem atividade econômica por ali. Importam até farinha de mandioca. Eu tentei tomar uma dose de cachaça em Roraima, uma caipirinha, e vi que ali não existem alambiques para produzir cachaça.
Como é possível numa situação dessas transformar em crime a produção de arroz? Crime é contrabando. É narcotráfico. Qual é a razão para a proibição do cultivo de arroz? Vai proibir porque os arrozeiros são conservadores, de direita? Então vamos dizer que no Brasil só pode produzir quem é de esquerda?
Deputado, os arrozeiros não tinham títulos de propriedade das terras.
Isso podia ser resolvido. Era só chegar nos arrozeiros e estabelecer um preço para eles, dizer que a terra ia custar tanto. Aliás, porque os próprios índios não podiam arrendar aquelas terras, obter algum tipo de benefício dali? Os arrozeiros ficariam ali pagando alguma renda.
Por que isso não aconteceu?
Porque não querem que os índios tenham essa lucratividade. Querem que ele continue tutelado, como um integrante da fauna da região. Os índios não podem explorar a madeira, não podem explorar os minérios. O Estado poderia ajudá-los nessas atividades, mas tudo continua imobilizado.
Existem situações assim em outros países. No Canadá os índios fizeram acordos com grandes empresas para a exploração do petróleo em suas terras. Os índios americanos tam bém têm fontes de renda.
O PIB dos índios americanos é de 25 bilhões de dólares por ano. Milhares de índios tem fortunas acima de 1 milhão de dólares nos Estados Unidos. Mas isso decorre de um processo de integração. Não é a segregação, que mantém os índios em determinado estágio, para que as pessoas possam produzir suas teses de mestrado e doutoramento.
O senhor defende o seu projeto dizendo que é necessário mais mediação, mais negociação nos processos de demarcação das terras indígenas. Mas o processo da Raposa Serra do Sol levou mais de trinta anos. Será que não houve chance de todas as partes se manifestarem nesse período?
Houve chance de sobra. O que não houve foi interesse.
Afirma-se que, se o seu projeto for aprovado, não haverá mais demarcação de terras indígenas: todas as iniciativas serão barradas pela poderosa bancada ruralista do Congresso.
Acredito que o Congresso vai agir como tem agido, considerando em primeiro lugar a defesa da população indígena. Tudo que está sendo feito hoje decorre de uma autorização do Congresso - o Congresso Constituinte, que incluiu na Constituição a garantia e a defesa dos direitos indígenas. É com esse espírito que eu acho que as áreas devam ser demarcadas.
Em primeiro lugar está a proteção do índio, o reconhecimento da dívida que o País tem com as populações indígenas. É a maior dívida social que nós temos. Em segundo lugar está o sentimento de gratidão, pelo legado indígena à formação do nosso povo e do nosso País. Já se disse que o Brasil é como um grande rio, alimentado por três grandes afluentes na formação do nosso povo, o afluente indígena, o europeu e o africano. Desses três o que precisa de maior proteção é justamente o afluente indígena. É obrigação da sociedade nacional e do Estado brasileiro proteger as pop ulações indígenas. Mas proteger não significa segregar, não significa construir uma barragem para impedir que esse rio importante alimente a formação do nosso povo, da nossa cultura.
Eles sofrem de fato ameaças na sobrevivência física e na sobrevivência de suas culturas - daí a necessidade de demarcar suas terras, protegê-los. Mas ao mesmo tempo há necessidade de integrá-los; e não de estimular qualquer sentimento secessionista. Acho isso inaceitável.
O senhor acha que os antropólogos que trabalham com as comunidades indígenas estimulam sentimentos secessionistas?
A antropologia, um ramo das ciências sociais, foi muito desenvolvida no auge do império britânico. A primeira sociedade antropológica surgiu na Inglaterra. O império estimulava, porque por meio da ciência conhecia melhor os povos a serem subjugados. Em seus primeiros momentos, a antropologia procurava convencer os chamados povos tribais, na África e em outros continentes, a se submeterem aos padrões da sociedade ocidental, porque isso interessava à afirmação do domínio britânico.
Quando os impérios coloniais se desintegraram e essas sociedades tribais passaram a integrar embriões de Estados nacionais, a antropologia passou a aconselhá-los a permanecerem em seu estágio tribal, afirmando que os Estados nacionais eram uma ameaça para eles. Deviam, portanto, formar Estados nacionais próprios e contestar a política de integração.
E é isso que, em resumo, vejo acontecer hoje no Brasil. Dizem para os índios: continuem no seu estágio, o Estado nacional ameaça a vocês.
Eu acho que não há futuro para essas populações fora do Estado nacional brasileiro. O que os índios vão fazer? O que vão constituir? Pequenos Estados? Frágeis? Estados fantoches?
É preciso administrar os conflitos dessas sociedades, dessas populações, dentro do Estado nacional.
Pelo que diz, existe uma ameaça à segurança nacional.
No ano 2000, Orlando Villas-Boas, sertanista que dedicou a vida aos indígenas brasileiros, deu um depoimento a uma emissora de TV, hoje acessível pela internet, no qual fez uma advertência que é quase uma profecia. Disse que jovens ianomamis estavam sendo levados para os Estados Unidos, onde iam ser treinados, onde iam aprender inglês. Depois retornariam ao Brasil para pedir a criação de um território próprio, um Estado. Nesse momento receberiam a proteção da ONU, que transferiria a tutela dessa população a uma grande nação. Ele disse que talvez não vivesse para ver isso, mas fez a advertência. Ele dizia: 'Eles não estão interessados nos ianomamis, mas nas riquezas que há no subsolo dessa região da Amazônia e, principalmente, de Roraima."
Não acha isso fantasioso?
Não. O Brasil já viveu isso em diversos episódios. Um deles ocorreu ali mesmo, em Roraima. No início do século 20 o Brasil perdeu para a Inglaterra 20 mil quilômetros quadrados do antigo Território de Roraima, em área consagrada, em fronteira já marcada como parte do território brasileiro. Inicialmente a Inglaterra enviou uma missão geográfica à região. Depois apareceu uma missão religiosa, que catequizou os índios, que, por sua vez, pediram a proteção da Inglaterra. Foi aí que os ingleses impuseram o estado de litígio sobre uma área de 40 mil quilômetros quadrados. Estamos falando, como já disse, de um episódio ocorrido no século 20, numa área já demarcada como parte integrante do território brasileiro.
O caso foi submetido à arbitragem do rei da Itália, que dividiu o que era nosso: deu 20 mil quilômetros para a Inglaterra e deixou outros 20 mil para o Brasil.
Os ingleses queriam ter acesso à Bacia do Rio Negro, descendo por um dos seus afluentes. O maior rio da Guiana nasce nas serras que fazem fronteira com o Brasil, mas corre para o norte, em direção ao Caribe.
O território brasileiro sempre foi cobiçado. Nós tivemos também o caso da Bolívia, que tentou vender o Território do Acre aos Estados Unidos.
Os americanos chegaram a enviar uma canhoneira, que invadiu clandestinamente a Bacia do Rio Amazonas. Ela chegou a Manaus e saiu de lá com as luzes apagadas para não ser percebida. Seu capitão, com medo de se perder, recrutou dois práticos amazonenses e entregou a eles a direção do barco. Como não podia fazer isso com estrangeiros, tratou antes de conferir aos dois a nacionalidade americana. Isso foi em 1899, já pertinho do século 20, no auge do conflito por aquela área.
O Brasil não queria o Acre, desestimulou a ação dos seringueiros, que resistiam à ideia de deixar a área, e até mandou uma missão para dizer que se tratava de território boliviano.
O Brasil só mudou de posição quando percebeu a campanha na Bolívia para transferir o Território d o Acre para os Estados Unidos, por meio de uma empresa colonial. O cônsul dos Estados Unidos em Belém já estava articulado a transferência quando essa canhoneira entrou na Bacia do Amazonas.
A Bélgica também tentou ocupar uma área no território do Mato Grosso. Temos uma capital de Estado, São Luís, no Maranhão, que foi batizada em homenagem ao rei da França. Os holandeses ficaram algumas décadas no Nordeste. Há razões de sobra para acreditar que a cobiça continua. Pode não ser uma coisa para hoje. Mas continua.
O Brasil é signatário de convenções internacionais que tratam da questão indígena, procurando sobretudo proteger essas populações. O senhor acha que podem constituir risco para a segurança nacional?
Sim. As convenções constituem uma ameaça. Principalmente a convenção da ONU que reconhece a soberania das populações indígenas. O Brasil deve ouvir os índios, que hoje não são ouvidos por ning uém. Nem pelas ONGs, que exercem uma espécie de tutela sobre os índios, nem pelo Estado. Aliás, se você examinar a resolução do Supremo Tribunal Federal, que confirmou a demarcação da Raposa Serra do Sol, verá o seguinte: a pretexto de demarcar uma área contínua, o que era uma reivindicação das ONGs, a resolução retirou qualquer tipo de atribuição dos índios. Essa resolução também não é boa. Não serve ao processo de integração dos índios na sociedade brasileira.
Como vê a ação das ONGs?
O problema das ONGs é que veem os índios como se fossem instrumentos para estudos de caso de antropologia. Os índios dentro da reserva tem quase o status de uma cutia, uma paca, um bicho. Ele não têm direitos. São duplamente tutelados, pelas ONGs e pelo Estado.
Os índios precisam ter direitos dentro de suas reservas. Hojes eles não têm nem mesmo como sobreviver. Já encontramos vereadores e prefeitos indígenas, mas que atribuições eles podem ter? Que tipo de liberdade os índios têm dentro de suas reservas? Nenhuma. As pessoas não ouvem os índios.
Vê diferenças entre a atuação das ONGs nacionais e internacionais?
Não há nenhuma diferença. Elas estão imbricadas. As ONGs nacionais são subsidiadas pelo dinheiro estrangeiro. Uma vez visitei uma área ianomami e ali fui recebido numa maloca por uma moça de uma ONG chamada Urihi. Cheguei acompanhado pelo comandante militar da região, generais, coronéis, mas eles não puderam entrar. Foram impedidos. Eu entrei porque era deputado.
Na conversa com a moça, reclamei das condições da vida dos índios, condições insalubres, com taxas elevadas de doenças infecciosas, casos de tuberculose, subnutrição. Sugeri que fossem instalados na aldeia sistemas de fornecimento de água e de luz por ali. Mas a moça contestou, dizendo que isso iria transformar a cultura ianomami.
O ambiente era triste, depressivo. Só vi um pouco de alegria nos meninos, que jogavam futebol. Depois eu soube que essa Urihi tomou muito dinheiro do governo, em convênios, e simplesmente desapareceu, sem prestar contas. Isso ocorre porque ninguém fiscaliza, porque a legislação não prevê a fiscalização do dinheiro público que vai para as ONGs, na forma de repasses.
É claro que também existem ONGs que de fato prestam ajuda, que são verdadeiramente humanitárias.
Organizações envolvidas com questões indígenas dizem que a prioridade do Congresso deveria ser a votação do Estatuto do Índio, que há muito tempo está parado por lá.
Veja isso: de um lado acham que o Congresso não é confiável, mas de outro querem que ele vote o Estatuto. Não estariam pedindo isso se achassem que o Estatuto pudesse representar um retrocesso.
Nós devemos votar o Estatuto, demarcar as áreas indígenas, assegurar os direitos indígenas, gara ntir a presença do Estado no meio deles. Nós temos uma Sub-Funai terceirizada, que praticamente entrega às ONGs a administração da assistência aos índios. Queremos uma Funai forte, com uma política própria, que reconheça as dificuldades dessas populações. Como a sociedade deve se comportar diante do índio? Segregando ou integrando? Eu defendo a integração.
Como vê as cotas em instituições públicas para os índios?
Eu sou contra as cotas raciais. Mas no caso dos índios acho que deve haver uma política de cotas. Acho lamentável perceber, nos pelotões que protegem a fronteira brasileira, que não contam com nenhum oficial indígena. Eles compõem o grosso da tropa, mas não chegam ao oficialato. É preciso uma política própria para que isso ocorra, uma política que reconheça as dificuldades dessas populações e que abra caminhos , exceções.
O senhor fala muito em integração. Acha que essa política deve servir mesmo para os índios isolados, sem contato com outras culturas, como os que vivem na fronteira do Brasil com o Peru?
A nossa política sempre foi de fazer contatos. Como é que o Estado vai prestar assistência a esses índios? Como vai levar assistência médica? Esses índios têm direito à alfabetização, a boas escolas. A política do Brasil sempre foi de fazer contato, respeitando esses povos. Não é o contato para desalojá-los. Não é o contato para romper, mas sim, para que recebam do Estado e façam suas escolhas.
Essa política de integração obedece e respeita os diversos estágios das diversas populações indígenas. Existe uma forma de integração para aquelas que se encontram no estágio tribal, vivendo da caça, da coleta; e outra forma para as que estão no estágio de integração mais avançado. Conheci no município de Uiramutã, em Roraima, um vereador macuxi que é professor de química, física, mat emática. Todo ano a Universidade Federal de Roraima festeja a formatura de turmas indígenas. Isso está certo ou errado? Eu acho certo.
Uma das situações mais trágicas verificada entre os povos indígenas, neste momento, é dos guaranis caiuás, do Mato Grosso do Sul. Eles estão concentrados em pequenas áreas, impossibilitados de manter sua cultura, sua forma de organização social, que ocorre por meio de clãs familiares. O nível de suicídio entre jovens é elevado, assim como os índices de alcoolismo, de subnutrição infantil. A situação é agravada pelo fato de serem hostilizados pela população local, que tenta impedir os trabalhos de antropólogos e técnicos para a demarcação das terras. Como acha que se pode resolver essa situação?
Temos guaranis também aqui em São Paulo, em duas reservas, em Parelheiros, na Zona Sul, e no Pico do Jaraguá, na Zona Norte. Elas dependem da ajuda da Prefeitura, que oferece a as sistência básica, com escolas, cesta básica. Não vejo muito interesse das ONGs por essas populações. Elas também reivindicam a ampliação das áreas em que vivem, mas as possibilidades são limitadas, porque estão cercadas por florestas e áreas urbanas, já ocupadas.
Sobre a questão do Mato Grosso do Sul, não tenho informações completas. Mas creio que deve ser demarcada uma área maior para os índios. Desde que sejam levados em conta também os interesses da comunidades de agricultores que ali vive.
Qual seria a área suficiente para esses índios? Como o governo pode adquirir? Se aquela área é fundamental para as populações indígenas, se eles não podem ser deslocados daquela área, quem pode ser? Mediante que tipo de acordo? Ainda existe uma área de fronteira agrícola muito vasta naquela região e é possível encontrar alternativas para quem planta soja e cria gado. Só que isso tem que ser mediado. A solução existe. O que imobiliza é a atitude unilateral, de tentar resolver sem negociar.
Embora pertença a um partido comunista, de esquerda, suas propostas batem com as de grupos mais conservadores, à direita do espectro político. Não sente receio de ser identificado com esses grupos?
Não. Minha posição ao longo da vida sempre foi em defesa da democracia, do socialismo e do Brasil. Acho que a base para a construção de uma sociedade avançada no mundo de hoje é o seu país. Quem viaja pelo mundo pode ver que, apesar do discurso da globalização, o espaço das pessoas ainda é o espaço do país.
Fiquei muito marcado pela leitura do romance 'Questão de Honra' do paranaense Domingos Pellegrini Jr, que é uma releitura da Guerra do Paraguai e da Retirada de Laguna. Muito bonito. O personagem principal é um oficial que acompanha o Taunay e reconta a história a partir de uma posição muito crítica.
Taunay era um militar enquadra do, para quem tudo estava certo; enquanto o outro sempre tinha críticas. Mas, no fim, já velho, ela acaba dando razão ao Taunay, reconhecendo que o que estava em jogo era a defesa do País.
Nós temos que defender nosso País. É a base comum de todo mundo. Qualquer projeto transformador tem como origem e como base a existência de um país. Ele deve proteger o que se conseguiu até hoje: o território, certo estágio de desenvolvimento, a unidade, nossa forma de enfrentar os desequilíbrios, as desigualdades.
O senhor se inspira no Marechal Cândido Rondon?
Me inspiro no Rondon, me inspiro no Darcy Ribeiro, na história do Brasil. O índio no imaginário do Brasil é diferente do índio do imaginário dos Estados Unidos. A imagem do índio nos Estados Unidos é daquele índio cercando a diligência. O herói para eles é sempre aquele que mata o cacique, que dizima o maior número de índios. Em qualquer cidadezinha americana, quando você vê uma estátua, pode ter certeza: foi ele quem matou mais índios. Bufalo Bill fazia exibições em teatros de Nova York contando como tinha conseguido matar tantos índios.
O nosso imaginário é diferente. Nós cultivamos os heróis indígenas. Todos eles. Os que lutaram a favor dos portugueses, como Poty e Tibiriçá; os que lutaram contra, como Sepé-Tiaraju, Cunhambebe, Ajuricaba. Tivemos índios estadistas, com presença forte no rumo da política brasileira. Sem o acordo com Tibiriçá, os jesuítas não teriam conseguido se instalar em São Paulo. O Poty teve um papel importante na expulsão dos holandeses em Pernambuco e chegou a ser condecorado pela Coroa Portuguesa.
Nossa tradição é essa. Nos misturamos com índios desde os bandeirantes. Nos Estados Unidos, as famílias que vinham da Inglaterra não se misturavam. Casavam entre eles, rezavam em suas igrejinhas de madeira.
Nós tivemos até uma corrente literária indianista. A obr a de um dos nossos grandes poetas, Gonçalves Dias, foi lastreada em dois grandes poemas épicos, Juca Pirama e Timbiras - traduzidos para o mundo inteiro. O romance Iracema, que Alfredo Bosi chama de obra-prima e Machado de Assis reconhece como obra mate da nossa literatura, é um ensaio romanceado da vida indígena no Brasil.
No Império, na época da luta pela independência de Portugal, nossos rebeldes trocavam o sobrenome de origem portuguesa pelo sobrenome indígena - como forma de demonstrar a ruptura. José Bonifácio defendia a integração das populações indígenas.
O senhor acha que a questão da demarcação de terras quilombolas tem relação com essa discussão sobre as terras indígenas?
Tem muita relação. Imagine o seguinte: qual País colocaria em risco a sua base de lançamento de foguetes, como estamos vendo acontecer com a Base de Alcântara, no Maranhão? Em algumas áreas a q uestão quilombola está provocando divisões no meio do povo, no meio dos pobres, das famílias. Há casos, no Piauí, no Ceará, em que os pobres brigam, porque chega dinheiro, luz e água para os quilombolas, enquanto, ao lado dali, famílias tão pobres quanto eles continuam sem água nem luz. Isso é uma coisa importada dos Estados Unidos. A política de segregação nunca foi política de Estado no Brasil.
Mas nós temos racismo.
Temos. E ele precisa ser combatido e denunciado. A melhor forma de fazer isso é valorizar ainda mais a herança negra e indígena no conjunto da sociedade brasileira. Mostrar que todos nós somos tributários dessa herança negra e indígena. Uma loira de olhas azuis, como a Vera Fischer, mesmo que não traga no sangue a herança africana e indígena, é uma mulata do ponto de vista cultural, da miscigenação que tivemos aqui. Isso é o mais importante: o que trazemos na cultura, na psicologia, na c ulinária, no jeito de perceber o mundo, na capacidade de respeitar o diferente.
Quando você segrega, você retira do nosso processo civilizatório o que ele tem mais humano, de mais avançado. Nossas mazelas estão aí.
Deputado, a rejeição dos índios em Roraima sempre foi tão forte que eles mesmos não gostavam de ser chamados de índios, assumindo o ponto de vista de quem os oprimia. Isso mudou no processo da luta pela demarcação de suas terras. Hoje muitos não querem ser apenas chamados de índios: exigem que seja feita referência ao seu povo de origem. Sou macuxi, dizem. Sou ingaricó, patamona... Isso não é bom?
Claro que é bom. O preconceito vai diminuindo em todas as áreas. Pega o caso do preconceito contra o nordestino, no Rio e em São Paulo. Ninguém te chama de negro na rua. Mas continuam te chamando de baiano e paraíba. No passado o preconceito era contra os italianos, chamados de carcamanos. Nenhuma fam lia ilustre de São Paulo queria que sua filha sequer pensasse em casar com um italianinho. Hoje o preconceito já mudou de lugar: em São Paulo, há descendentes de italianos que se acham melhores que brasileiros.
O índio sempre foi visto como bêbado e preguiçoso.
O índio nunca foi preguiçoso. Ele não estava adaptado à disciplina do trabalho, nem na escravidão nem no capitalismo. O Darcy Ribeiro diz que nós devemos a essa indisciplina indígena parte importante da nossa intolerância às coisas rígidas. Ela nos torna mais flexíveis e mais abertos.
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