Mestre!
Chega
às livrarias na semana que vem, dia 28, Toda Poesia, obra que reúne pela primeira vez, e em um só
volume, de 424 páginas, 600 poemas do escritor curitibano Paulo
Leminski, um dos grandes nomes da literatura brasileira da segunda
metade do século 20.
Ao longo dos
nove meses de gestação do livro, a viúva de Leminski, a também poeta
Alice Ruiz, trabalhou com a editora Sofia Mariutti, da Companhia das
Letras. Ela conversou com a reportagem da Gazeta do Povo sobre todo o
processo de elaboração do projeto, negociado com ela pelo proprietário
da Companhia, o escritor e editor Luiz Schwarcz, que foi responsável
pela publicação de Caprichos & Relaxos (1983), pela Brasiliense, da
qual era diretor à época. O livro fez de Leminski um nome nacional. Leia
a seguir trechos da entrevista.
Como se deu a negociação para que a Companhia das Letras pudesse reunir, em um só volume, toda a obra poética de Paulo Leminski?
A negociação se deu entre o Luiz Schwarcz [diretor da Companhia das
Letras] e a poeta Alice Ruiz [viúva de Leminski], que já haviam começado
esse diálogo décadas atrás, em 1983, quando a editora Brasiliense
publicava Caprichos & Relaxos.
Você já estava familiarizada com essa obra? Qual seria, em
sua opinião, o lugar dele na história da poesia brasileira do século 20?
Sim, eu já estava bastante familiarizada com a obra, só não conhecia
as primeiras edições, independentes, e 40 Clics em Curitiba, que hoje é
uma raridade vendida a R$ 300 no [ sebo on-line] Estante Virtual. O
Leminski foi um dos primeiros poetas de que gostei, acho que quem me
apresentou a ele foi meu pai, ainda na adolescência, e aí sua poesia foi
como uma porta de entrada para a poesia concreta, que até hoje é a
corrente com que tenho mais afinidade. E quanto ao seu lugar na poesia
brasileira do século 20, bem, não sou a única a achar que ele é o maior
poeta que o Brasil conheceu desde a década de 1970.
Como foi feito o trabalho de escolha e organização dos textos? Quais critérios foram utilizados no processo de edição?
A escolha dos textos partiu da Alice, que nos enviou os seis livros
dos quais partiu a nossa edição: 40 Clics, Caprichos & Relaxos,
Distraídos Venceremos, La Vie en Close, O Ex-estranho e Winterverno.
Depois, pedi à Alice para ver os originais de Polonaises e Não Fosse
Isso e Era Menos, Não Fosse Tanto e Era Quase, que integram Caprichos
& Relaxos, e foi aí que me dei conta de que nem todos os poemas
dessas edições caseiras saíram na edição da Brasiliense. Resolvemos
então reuni-los na última seção, “Poemas Esparsos”.
Os critérios da nossa edição foram os seguintes: em primeiro lugar,
publicar toda a poesia já lançada em livro. O cancioneiro de Leminski
ainda não está todo catalogado, por exemplo, e seria matéria para um
outro capítulo. Estrela [Ruiz Leminski], filha dele, tem se dedicado à
música do pai. Outro critério importante que tivemos de adotar durante a
edição foi não repetir poemas. Eram muitos os textos repetidos ao longo
da obra, com quase nenhuma ou nenhuma diferença entre eles – não havia
por que repeti-los. Tudo isso está explicado ao longo das notas
editoriais. Era importante, ainda, tentar reduzir o número de páginas,
para que seu preço fosse acessível ao público jovem, de estudantes.
Ainda que seja um catatau, Toda Poesia tem 424 páginas e custa R$ 46, o
que considero uma vitória. Por isso, também, não quisemos reproduzir as
imagens de 40 Clics nem as de Winterverno. Além de encarecer o livro,
elas não eram fundamentais na criação nem na compreensão dos versos como
são fundamentais os trabalhos gráficos dos poemas concretos, esses sim
reproduzidos ao longo de Toda Poesia.
A viúva de Leminski, a poeta Alice Ruiz, teve papel
importante nesse processo. Como se deu o diálogo e o trabalho em
parceria com ela?
Todas essas decisões foram tomadas junto com a Alice Ruiz, com quem
me reuni por duas tardes inteiras e mantive um contato muito próximo por
esses nove meses de gestação do livro. Depois veio a sua apresentação
ao livro, emocionada e inspiradora.
Fale um pouco sobre o projeto gráfico do livro. De que maneira ele reflete o universo da obra de Leminski?
A capa e o projeto gráfico são da Elisa V. Randow, que além de
designer é uma grande artista. Tudo é difícil quando se trata de dar uma
unidade à obra poética de um artista tão plural como Leminski, e
considero a opção do bigode na capa muito acertada: é extra-poética e
concentra a estética personalíssima de Leminski. Além da capa, a Elisa
trabalhou também no miolo, e trouxe a ideia dos pingos de nanquim para
separar poemas que aparecem na mesma página, resgatando o traço oriental
que já era característico de La Vie en Close e Distraídos Venceremos.
O que, na sua opinião, há de mais surpreendente nessa edição?
A quantidade de poemas, mais de 600! Antes, não tinha a dimensão de
quanto Leminski era prolífero. O poema breve é o seu disfarce.
Fale sobre a contribuição de José Miguel Wisnik à edição, um posfácio inédito que fala sobre a obra musical de Leminski.
Coisas do acaso objetivo: fui a um show do Zé Miguel em agosto de
2012 em que ele falou um pouco do Leminski, da relação entre os dois,
que além de parceiros musicais têm uma mesma ascendência, polonesa por
parte de pai e mineira por parte da mãe. E aí o Zé Miguel tocou,
acompanhado da Monica Salmaso, “Polonaises”, uma música de influência
chopiniana que ele compôs a partir de um poema polonês de Adam
Mickiewicz que o Leminski traduziu e usa como epígrafe do livro
homônimo: “Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas...”. Aí veio esse
insight de que seria ótimo se o Zé Miguel contribuísse com o livro
falando um pouco do Leminski cancionista. O texto dele é a grande
novidade para o aparato crítico.
Há planos de a Editora publicar um outro livro com as letras das canções compostas por Leminski?
Vale notar que muitas canções aparecem no livro, algumas porque a
princípio eram poemas, outras porque já faziam parte da obra publicada,
como “Verdura”, que foi gravada por Caetano Veloso, e “Dor Elegante”,
parceria com Itamar Assumpção. Mas o catálogo das canções ainda não está
pronto; pelo que a Alice me disse, é muito mais coisa do que podemos
imaginar, e a Estrela está trabalhando nisso. E bem, existe um outro
porém: letra de música é uma coisa, poema é outra. A letra e a música
andam juntas, e para o poema basta a página. Mas a Companhia das Letras
não exclui a possibilidade de publicar outras obras de Leminski, sejam
os livros de não ficção ou as canções. E estamos estudando as
possibilidades.
Artigo
O Leminski “essências e medulas”
Falando, em A Geração que Esbanjou Seus Poetas, sobre a importância
da obra do então recém-falecido Vladimir Maiakovski (1893-1930) para a
poesia moderna russa, Roman Jakobson afirma que a dificuldade em
discorrer sobre ela residia no fato de que, naquele momento, não era “o
ritmo e sim a morte” do poeta o assunto dominante. E, citando versos do
próprio Maiakovski, completava afirmando que o “sofrer repentino” ainda
não estava pronto a ceder a uma “dor claramente absorvida”.
Se, no caso da obra de Paulo Leminski – também, a exemplo do
futurista russo, prematuramente desaparecido –, tal verdade igualmente
se aplicou há 24 anos, hoje, pode-se dizer que o imbróglio editorial que
tanto postergou a edição de suas poesias completas, nos possibilita,
“claramente absorvida” a “dor” de sua perda, um distanciamento crítico
suficiente para uma análise de sua linguagem que priorize o seu “ritmo”
antes que a sua “morte”.
A poesia de Leminski é uma poesia haicai, com influxo direto dos
poemas-minuto oswald-andradianos. Obcecado pelo minimalismo da forma
japonesa – sobre cuja figura de proa, o poeta Matsuó Bashô, chegou a
escrever uma minibiografia – acoplou à sua concentração, síntese e rigor
extremos o amor/humor da linguagem pau-brasil modernista, criando uma
dicção personalíssima, que sobrepuja em muito à intuição e ao improviso
da geração dita marginal, ou alternativa, como queiram, à qual ele está
cronologicamente atrelado, e cujas obras (poemas compostos não raro em
guardanapos de papel de bar, a partir de manchetes de jornal, outdoors,
grafitis, etc.), hoje lidas, ao contrário da sua, soam, quando muito,
como registros pontuais algo interessantes da sociedade sufocada pela
ditadura militar de então. O humor e a lírica do haicai leminskiano,
passando ao largo de tais diluições, sabem soar ainda hoje inventivos e
atuais.
Não se queira, no entanto, dizer que Toda Poesia de Paulo Leminski,
sem exceção, resiste. Não. E o que a edição de seus versos coligidos
pede é justamente um crivo crítico apurado (de seu “ritmo”, antes de que
de sua “morte”, para lembrar uma vez mais o Maiakovski que Jakobson
lamentava em não poder abordar criticamente àquela ocasião), e que o
espaço de que disponho, aqui, infelizmente não permite levar a cabo.
Este crivo deve, segundo penso, separar o joio do trigo da obra. Os
caprichos dos relaxos, para lembrar o título da coletânea que, em meados
dos anos de 1980, “elevaria” a condição de sua poesia para além dos
mimeógrafos dos quais seus contemporâneos marginais (e o próprio poeta
também) serviam-se (eles mesmos, às suas próprias custas, na maioria das
vezes) para divulgarem seus versos. A edição da obra pela Brasiliense
viria, aliás, a ampliar o leque de sua fama primeiramente entreaberto
pela bela gravação da canção “Verdura”, música e letra do próprio
Leminski, por Caetano Veloso (também seu contemporâneo e, cuja vertente
poética de uma obra de teor eminentemente musical-popular, o poeta
idolatrava a ponto de afirmar repetidamente que considerava superior a
da maioria dos poetas do século 20). A partir de Caprichos e Relaxos, o
interesse pela poesia leminskiana só viria a crescer, até sua morte, em
1989.
Que a longamente acalentada e aguardada edição de seus poemas
completos, finalmente concretizada pela Companhia das Letras, venha
sensibilizar o mercado para recolocar em circulação também a
refinadíssima prosa de invenção leminskiana que é o seu Catatau –
romance-ensaio que conjuga Jorge Luis Borges (ao trazer René Descartes
para o “labirinto de enganos deleitáveis” da fauna e flora brasileiras
dos seiscentos) e o James Joyce do Finnegans Wake (com uma pletora de
palavras-valise que descompõe a razão cartesiana).
E, mais que isto, que o Leminski “essências e medulas” (Ezra Pound)
do haicai venha a alavancar o panorama há tanto tempo desolador –
porque, com raríssimas exceções, acrítico, diluído e amorfo – da poesia
contemporânea daqui e d’alhures.
Daniel Lacerda, doutor em Estudos Literários pela UFPR
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