terça-feira, 17 de setembro de 2013

Ditaduras unidas: Brasil concedeu ajuda bioquímica a Pinochet.



O ex-ditador chileno, Augusto Pinochet, comandou o país desde o golpe de 1973 até 1990
Foto: RIA Novosti / Agência O Globo
O ex-ditador chileno, Augusto Pinochet, comandou o país desde o golpe de 1973 até 1990 

A Justiça do Chile investiga um aspecto pouco conhecido da colaboração brasileira com a ditadura do general Augusto Pinochet, entre os anos 70 e 80: a criação de armas bioquímicas para eliminar opositores do regime chileno.
Pinochet comandou um golpe de Estado há quatro décadas e permaneceu no poder durante 17 anos (de 1973 a 1990). Seu legado inclui uma lista oficial de 3.225 mortos e desaparecidos, além de 37.055 presos políticos torturados.

Uma coletânea de evidências e testemunhos, em diferentes processos judiciais, conta a história do envenenamento de adversários políticos do regime, com uso de substâncias bacteriológicas (toxinas botulínicas e estafilococo dourado) e derivados químicos (organofosforados, como os gases sarin e tabun), manipulados em laboratórios militares e da polícia política.

Por esses indícios, o Exército chileno obteve no Brasil a letal neurotoxina botulínica. Derivado da bactériaClostridium botulinum, é um veneno muito mais potente que o cianureto. Provoca intoxicação (botulismo) com paralisia dos músculos levando à morte por asfixia.
Ampolas encontradas no porão
O Brasil uniu-se aos Estados Unidos no apoio ao golpe de 1973 no Chile. O regime chileno contou com pleno respaldo de Brasília — desde amparo financeiro até diplomático (o Brasil votou sucessivamente, até 1983, contra todas as resoluções da ONU que condenavam o governo Pinochet pela degradação dos direitos humanos.) Mas a harmonia entre as ditaduras vizinhas prevaleceu mesmo na repressão política. O Brasil ajudou na criação da Escola de Inteligência, manteve um intercâmbio de informações, formou e treinou agentes enviados de Santiago. Os comandos do Exército no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre cooperaram em operações chilenas contra exilados políticos.
Para disfarçar o contrabando de toxina botulínica obtida no Brasil, conforme depoimentos judiciais, militares chilenos usaram o Instituto Bacteriológico (atual IPS, Instituto de Saúde Pública) como órgão de fachada. Para garantir a segurança no transporte, mobilizaram a Embaixada em Brasília. O material tóxico chegou a Santiago por mala diplomática.
Os laboratórios do “Bacteriológico”, como o IPS era conhecido nessa época, estavam sob direção do Exército, mas também eram usados pela Direção de Inteligência Nacional (Dina), agência especializada na repressão política responsável por nove em cada dez casos de tortura.
Indícios da cooperação brasileira foram reforçados, três semanas atrás, pela médica Ingrid Heitmann Ghigliotto. Ex-diretora do IPS, ela contou à agência de notícias DPA ter encontrado no porão do instituto “duas caixas com ampolas de toxinas botulínicas do Instituto Butantan”, de São Paulo: “Foi em 2008 e eram suficientes para matar metade de Santiago”.
Especializada em microbiologia e infectologia, Heitmann Ghigliotto integra o Comitê de Contingência por Ameaça de Guerra Biológica do Ministério da Saúde chileno e é consultora da Organização Panamericana de Saúde. Esteve presa durante o regime Pinochet. Ela incinerou o estoque, sem comunicação oficial, sob o argumento de que “não podia imaginar” que viesse a ter relevância como prova judicial. Agora Heitmann Ghigliotto enfrenta ameaça de processos por obstrução de Justiça.
— Não quero falar sobre o caso da toxina, desconversou na quinta-feira. — Vou aguardar os acontecimentos na Justiça.
Em São Paulo, o Instituto Butantan informou não possuir em arquivo qualquer informação sobre exportações de toxina ou anatoxina botulínica para o Chile durante as décadas de 70 e 80. Em Brasília, o Ministério da Saúde comunicou que, também, não possui registros de remessas ao antigo “Bacteriológico” de Santiago.
Foi nos Estados Unidos, no final da década de 70, onde apareceram as primeiras pistas sobre o interesse do Exército e da Dina em armas bioquímicas. A iniciativa da Dina, sob o codinome “Projeto Andrea”, foi descoberta pelo FBI em 1978, durante a investigação de um atentado a bomba em Washington. Nesse ato terrorista morreram o asilado chileno Orlando Letelier, diplomata, e a americana Ronni Moffitt, sua secretária.
O agente da Dina Michael Townley, líder da equipe “Andrea” e organizador do atentado em Washington, confessou a agentes e promotores dos EUA que se dedicava “de forma quase exclusiva ao desenvolvimento de (gases) sarin, tabun e elementos de alta toxidade como Clostridium botulinum, entre outros.” A bactéria Clostridium botulinum produz sete tipo de toxinas, quatro delas potencialmente letais.
Na equipe “Andrea” estava o químico Eugenio Berríos, recrutado por Townley para a Dina no segundo semestre de 1974, quando militavam na falange neofascista Pátria e Liberdade. Dois anos depois, receberam o apoio de outro químico, Francisco Oyarzún Sjöberg. Funcionário público, ele foi oficialmente transferido “à Secretaria Geral de Governo para cooperar com a Junta de Governo”, segundo consta em decreto de Pinochet (número 003805) de março de 1976.
Numa segunda-feira, 7 de dezembro de 1981, o preso Guillermo Rodríguez convidou para um cozido seus amigos das Celas 5 e 10 do Centro de Detenção de Santiago. Chefe de uma das Milícias de Resistência, cumpria prisão perpétua pelo assassinato de um policial. Animado com a carne enviada por sua família, anunciou uma cazuela. Comeram e caíram, contorcidos. Dois presos comuns morreram, quatro presos políticos sobreviveram.
Conta Rodríguez:
— Eu soube que estava intoxicado com botulina quase 40 horas depois de sentir os primeiros sintomas de envenenamento. Quem me disse foi o diretor do Hospital da Penitenciária de Santiago, para onde fui transferido. Ele não fez nenhum exame, viu os sintomas e falou em botulina. Depois houve confirmação médica. Injetaram um soro importado dos Estados Unidos… Eu perdia e recuperava a consciência, e creio que (a confirmação) ocorreu quando fui transferido ao Hospital San Juan de Dios.
Passaram-se duas décadas. Em 2000, já restaurada a democracia, a Justiça chilena mandou investigar a morte do ex-presidente Eduardo Frei Montalva. Ele presidira o país entre 1964 e 1970, depois de vencer Salvador Allende numa campanha financiada pela CIA. Na eleição seguinte, Allende chegou ao poder, mas foi derrubado (em 1973) pelo general Pinochet. Frei Montalva, líder da Democracia Cristã, tornou-se referência da oposição ao regime militar. Em janeiro de 1982, ele entrou num hospital de Santiago para uma cirurgia simples, de hérnia. Saiu em caixão lacrado, morto por septicemia.

Suspeita de uso contra ex-presidente
Na investigação da suspeita de envenenamento do ex-presidente, o químico-farmacêutico Marco Poduje Frugon, funcionário do “Bacteriológico”, revelou que em meados de 1981 o chefe de segurança do instituto, coronel Jaime Fuenzalida Bravo, pediu-lhe para ir ao palácio presidencial de La Moneda receber uma encomenda. Frugon contou ter assinado recibo em troca de “um pacote pequeno”.
Voltou ao laboratório:
— Abri o pacote, tirei um tubo com o rótulo Clostridium Botulinum e guardei imediatamente no refrigerador, por se tratar de uma bactéria bastante perigosa. Na segunda-feira seguinte levei o tubo ao chefe do laboratório, Hernán Lobos, pensando que ele é quem havia solicitado. Não sabia de nada e, então, fui perguntar ao coronel Larraín (Joaquín Larraín Gana, diretor da instituição). Ele ficou com as toxinas e eu nunca soube o que aconteceu com elas e quem as havia pedido.
O depoimento de Prugon está parcialmente transcrito em livros recentes dos jornalistas Jorge Molina Sanhueza e Benedicto Castillo Irribarra sobre a investigação judicial da morte do ex-presidente Frei Montalva. Seis militares e civis acabaram condenados pelo assassinato. No último 23 de agosto, eles tiveram suas penas aumentadas pelo juiz encarregado do caso, Alejandro Madrid, que comanda os inquéritos sobre as armas bioquímicas da ditadura chilena.
— Já estão identificados os chilenos envolvidos — diz Castillo Irribarra. — Ainda não se conhecem os nomes dos colaboradores no Brasil que forneceram as toxinas botulínicas.
Talvez, algum dia, a Justiça chilena e brasileira unifiquem esforços para levantar as provas.





 

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